terça-feira, 26 de setembro de 2017

Mãe e Filho

"O poeta
bebe a água do Tigre e do Eufrates,
passa a noite sem dormir e às vezes tem caspa.
e nos salões tem reservado o seu lugar
e os raposos lambem-lhe a mão antes de fugir espantados
pelo áspero som do seu verso.
De puas, de facas, é a pele do poeta.
Com o despertar da luz sangra a pele do poeta.
Às vezes, desasado, silencioso,
deserto dos pés à cabeça,
anoitece de bruços na sua cama.
A inveja do poeta é amarela,
o seu sonho é azul como um céu sem guardas.
Por vezes devora-se a si mesmo, corta-se aos pedaços, reparte-se,
olha-se ao espelho, cospe, chora
sobre o mosaico da infância.
O poeta envelhece, engorda, arrota,
e ocasionalmente o poeta morre.
A poesia, que é imortal, olha-o de cima,
cega de luz e alheia como uma estrela antiga."

Poema de Piedad Bonnett (1951)
Da Antologia "Um País Que Sonha - cem anos de poesia colombiana"

domingo, 24 de setembro de 2017

Ninho das Águias

"Já eras misteriosa desde então
e nos mapas antigos chamavam-te Lissabona.
À distância contava as tuas sete colinas
como a Roma dos Césares, e repetia-me
as histórias de navegadores e as tuas lendas de conquista.
Apesar de nos separar a imensidade
do mar Atlântico, desde a minha carteira de colégio
acariciava a curvatura do globo terráqueo,
jurando que um dia chegaria às tuas margens.
 
Tantas vezes cortejada e celeste
apareceste aos meus olhos num dia de verão
de 1984, quando te vi do quarto
do Ninho das Águias,
um hotel estreito e suicida
que se persigna no monte de S. Jorge
de cada vez que Lisboa amanhece.
 
Um mapa durante dois anos dobrado e desdobrado
ardeu de véspera e de espera
sobre milhares de degraus, ardeu sobre as praças,
sobre a constante inclinação
das suas ruas, sobre o seu soçobrar marinho,
e atiramo-lo de uma ponte
para que seja o acaso a única bússola a orientar-nos.
 
Tento olhar os dias desde então
como se estivesse a uma janela do quarto
do hotel do Ninho das Águias,
vendo pela primeira vez como amanhece
a fragrante, a profunda, a ondulada
cidade de Lisboa."

Poema de Ramon Cote Baraibar (1963)
Da Antologia "Um País Que Sonha - cem anos de poesia colombiana"

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Conto

"Pergunto-me: porque escrevo poesia?
E desde algum lugar do misterioso bosque
(de outro conto que em vão estou tratando de escrever neste poema)
responde o lobo
movendo socrático a peluda cauda:
- Para melhor te conhecer"
 
Poema de Rómulo Bustos Aguirre (1954)
Da Antologia "Um País Que Sonha - cem anos de poesia colombiana"

domingo, 17 de setembro de 2017

O Homem Morto de Brooklyn

"Por trás do inverno de Nova Iorque
Que traz para os vidros
Um branco da Lapónia,
Alguns solitários
São encontrados mortos
Em frente de um televisor aceso.
Enquanto o homem se ajeita
Ao grande recinto da morte,
A voz de um modelo
Anuncia um cruzeiro pelas águas do Caribe
Ou o estado das estradas no Nebrasca.
Ao inspector,
Ao serralheiro,
À porteira do edifício,
Aos encarregados da autópsia,
Não deixa de os encher de melancolia
O televisor aceso
E a voz áspera
Que anuncia o fim da emissão."
 
Poema de Juan Manuel Roca (1946)
Da antologia "Um País Que Sonha - cem anos de poesia colombiana"

sábado, 16 de setembro de 2017

Deus e Tu

"No princípio eram a noite e o caos.
Veio Deus e criou os céus e a terra
e a luz e o dia e o homem.
Depois deteve-se, pensou um instante:
fez-te a ti.
E olhou-te fixamente, fixamente ...
teve medo e disse para consigo:
«Eram mais seguros a noite e o caos»
 
Poema de Jorge Valencia Jaramillo
Da antologia "Um País Que Sonha - cem anos de poesia colombiana"
 

Hindi Zahra - Silence


"Não me restou outro remédio senão inventar a minha própria teoria. Teoria filosófica e absurda, que menciono aqui por simples curiosidade. Dei comigo a pensar que, de acordo com Empédocles, os quatro elementos primordiais da Natureza são o ar, a água, a terra e o fogo. Todos eles estão vinculados à origem da vida e à sobrevivência da nossa espécie. Com a ar estamos em contacto permanente, visto que o respiramos, o expelimos, o climatizamos. Com a água também, dado que a bebemos, nos lavamos com ela e fruímos do prazer de nadar ou de andar de barco. Com a terra igualmente, pois caminhamos sobre ela, cultivamo-la, modelamo-la com as nossas mãos. Mas com o fogo não podemos ter uma relação direta. O fogo é o único dos quatro elementos de Empédocles que nos arreda, pois a sua proximidade ou contacto faz-nos mal. A única maneira de nos relacionarmos com ele é através de um mediador. E esse mediador é o cigarro. O cigarro permite-nos comunicar com o fogo sem sermos consumidos por ele. O fogo está num extremo do cigarro e nós no oposto. O cigarro a arder é a prova de que esse contacto é estreito, embora seja a nossa boca que expele o fumo. Graças a essa invenção satisfazemos a nossa necessidade ancestral de nos religarmos aos quatro elementos naturais da vida. Tal relação era sacralizada pelos povos primitivos através de diversos cultos religiosos - terrestres ou aquáticos - e, no que respeita ao fogo, através de cultos solares. Adorou-se o Sol porque encarnava o fogo e os seus atributos, a luz e o calor. Secularistas e descrentes que somos, já não podemos render homenagem ao fogo a não ser por meio do cigarro. O cigarro seria assim um sucedâneo da antiga divindade solar, e fumar uma forma de perpetuar o seu culto. Uma religião, em suma, por mais banal que possa parecer. Daí que renunciar ao cigarro seja um acto grave e lancinante, como uma abjuração."

Julio Ramon Ribeyro  em "A Palavra do Mudo"

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Há Um Instante

"Há um instante do crepúsculo
em que as coisas brilham mais,
fugaz momento palpitante
de uma morosa intensidade.
 
Aveludam-se as ramagens,
lustram as torres o seu perfil,
burila uma ave a sua silhueta
sobre a alta luz de safira.
 
Muda a tarde, concentra-se
para o esquecimento do dia,
e penetra-a um dom suave
de melancólica quietude,
 
como se o orbe recolhesse
todo o seu bem e sua beleza,
toda a sua fé, toda a sua graça,
contra a sombra que virá ...
 
O meu ser desponta nessa hora
de misterioso florescer;
levo um crepúsculo na alma,
de sonhadora placidez.
 
Nele rebentam os botões
da ilusão primaveril,
e nele embriaga-me com aromas
de algum jardim que há mais além! ..."
 
Poema de Guillermo Valencia
Da Antologia "Um País Que Sonha - cem anos de poesia colombiana"

sábado, 9 de setembro de 2017

Canção Para Uma Guitarra Triste



"When everything we felt fails
and some music soft and distant sails
but it didn't sound like it did before
then I know I'm left with nothing more
than my own soul
 
when pretty pictures face back
but your coats aren't hanging on the rack
and blue water turns to
a place I can't get, a place that I can't get
 
in the room all I feel is the cold that you left
through the air all I see is your face full of blame
what's left to see
what's there to see
 
in the room all I feel is the cold that you left
through the air all I see is your face full of blame
what's left to see, what's left to see"
 
 
"Quando tudo o que sentíamos falha
e uma música suave e distante paira
mas já não soa como dantes
então sei que não me resta nada mais
do que a minha própria alma
 
quando fotografias bonitas se voltam para trás
mas os teus casacos não estão pendurados no bengaleiro
e a água azul se dirige para
um lugar que não posso visitar, um lugar que não posso
 
no quarto tudo o que sinto é o frio que deixaste
através do ar tudo o que vejo é a tua cara cheia de culpa
o que restará para ver
o que haverá para compreender
 
no quarto tudo o que sinto é o frio que deixaste
através do ar tudo o que vejo é a tua cara cheia de culpa
o que restará para ver, o que restará para ver"
 
"Noites de Atropelo" de Mark Kozelek
Tradução de Vasco Gato