terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

"Múltiplas Mãos" de Armando Silva Carvalho

 "As mãos amadurecem, sorvem todo o sol
a que cada corpo tem direito
apenas porque nasce.

Mas há mãos excessivas e maduras de sonhos,
conchas duma maré que erra nas dunas
e se arrasta entre as areias mortas
e as nuvens térreas, brônzeas,
não santificadas.

Eu vejo-me nas mãos dos outros animais,
castigam-me pesadas 
contra os umbrais da noite.
São as graças do chumbo, fotos negativas
da alegria do mundo,
recolhem todo o peso dos corpos
naufragados.

E são as mãos da alma, mãos recolhidas da vida,
tão belas e tão fúnebres,
que o fogo, o fogo apenas as acaricia
com a leve e muda labareda
de deus."



Armando Silva Carvalho em "A Sombra Do Mar"
Assírio & Alvim
1ª edição, Julho de 2015
Página 90

"De Costas Voltadas" de Armando Silva Carvalho

 "Sempre agarrada aos dias, com o andar do tempo,
tudo passa a ser um enigma, a idade é uma senhora meio
amarrotada,
a lamber os jornais e a trocar as linhas
todas as manhãs.

Acabaram-se de vez as teorias sobre a voz do silêncio,
é outra a filosofia dos ruídos do corpo.
Quem não arrebanhou as metáforas para o inverno da vida
aquece quando aquece a língua e arde no frio.

Os dias são muito mais altos, parecem olhar por cima as 
gargalhadas,
os cães mais impacientes, mais cínicos,
o meu, que não existe, aprendeu a ralhar e já não ladra,
quer ser o meu compadre, e é isto, um cómico forçado.

Nunca pensei fazer poemas destes, tão naturalistas.
Andei a reler o Campos, mas não sei subir à sua metafísica.
O homem estragou de vez a vida a muita gente.
O Eugénio é que dizia:
com o Pessoa só de costas voltadas."



Armando Silva Carvalho em "A Sombra Do Mar"
Assírio & Alvim
1ª edição, Julho de 2015
Página 17

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

"Gargalo Grande" de Daniel Maia-Pinto Rodrigues

 
"Quando gaivotas se deslocarem
no azul da imagem, quando
nos ervaçais crescerem largas
acácias onde os pássaros brilhem -
quiseste partir.
Deixasses ao longe no alpendre
o início da iluminura.

Quando por fragrâncias perfeitas
descobrirmos o alecrim do outono,
é a hora de as rolas
adoçarem o silêncio, é a hora
de as mãos se desprenderem do frio.
Crê que, do lirismo
continuo a beber pelo gargalo."



Daniel Maia-Pinto Rodrigues em "Turquesa"
Imprensa Nacional - Casa da Moeda
1ª edição, Dezembro de 2019
Página 89

"Alteração" de Daniel Maia-Pinto Rodrigues

 "Olho estes desenhos
com calma espalhando a água das cascatas.

Nada me garante que dimanem luz pelos campos
os pássaros da manhã
nem que o fim dos bosques se alongue
pelas nuvens.

Olho de novo os desenhos
em relevo já a água turbulenta.

Ouvem-se as grandes tílias
comentando em segredo de brisa
a palidez de quem as desenha."



Daniel Maia-Pinto Rodrigues em "Turquesa"
Imprensa Nacional - Casa da Moeda
1ª edição, Dezembro de 2019
Página 33

"Turquesa" de Daniel Maia-Pinto Rodrigues (I)

 "Entendem as folhas
a rapidez
com que se desprendem dos ramos.
Entendem as asas
a debilidade dos pássaros.

Acima de tudo
o que interessa a novembro
é as crianças poderem dizer
está vento
é sentirem-no arrebatar-lhes os cabelos
engolfar-se nos gorros
misturar-se na roupa quente.

Há uma criança na escola
que através dos vidros vê novembro -
e a meia distância
ao lado do novembro
vê o anjo da guarda
a atirar pedras
lentamente contra a luz."



Daniel Maia-Pinto Rodrigues em "Turquesa"
Imprensa Nacional - Casa Da Moeda
1ª edição, Dezembro de 2019
Página 29

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Filmes: o que mais gostei em 2023

  • "A Arte da Luz tem 20.000 Anos" de João Botelho @ RTP2  
  • "ChungKing Express" de Wong Kar Wai @ TvCine Edition
  • "Dias Selvagens" de Wong Kar Wai @ TvCine Edition
  • "Disponível para Amar" de Wong Kar Wai @ TvCine Edition
  • "História de um Proprietário Rural" de Yasujiro Ozu @ Cinema Medeia Nimas
  • "Mal Viver" de João Canijo @ TvCine Edition
  • "Nyad" de Elizabeth Chai Vasarhely e Jimmy Chin @ Netflix
  • "O Fim do Outono" de Yasujiro Ozu @ Cinema Medeia Nimas
  • "Ramiro" de Manuel Mozos @ RTP2
  • "Viver Mal" de João Canijo @ TvCine Top

Dos Dias: o que mais gostei em 2023

 - 2º Evento de Xadrez @ Quinta das Palmeiras
 - A poesia como exercício espiritual @ Casa da Malta
 - A poesia do Al-Andaluz @ Livraria Municipal Verney
 - Marta Pereira da Costa (com António Pinto - viola) @ Museu do Fado
 - Oficinas de Maio no Jardim (papel de plantas) @ Casa da Cerca - Centro de Arte Contemporânea
 - Simbologia no Cemitério @ Cemitério dos Prazeres
 - Sons do Oriente Lírico @ Centro Científico e Cultural de Macau

Ecrãs: o que mais gostei em 2023

  • "A Paisagem de Artur Pastor" de Fernando Carrilho @ RTP2
  • "A vida é um autocarro vazio" @ RTP2
  • "Entre Imagens" @ RTP2
  • "Espaços incríveis de George Clarke"
  • "Eugénio de Andrade, o poeta" @ RTP3
  • "Herberto Helder - Meu Deus Faz Com Que Eu Seja Sempre Um Poeta Obscuro" @ RTP2
  • "Histórias da Montanha" @ RTP1
  • "Macaenses em Lisboa: Ilusão ou Realidade" @ RTP2
  • "Segredos das Rochas" @ RTP2
  • "Ruy Belo, Era Uma Vez" @ RTP2

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Arte & Cultura: o que mais gostei em 2023


 - "Avesso dos Afetos" de Sofia Salazar Leite @ Centro Cultural de Cascais

- "Da Calma Fez-se O Vento" de Sandra Rocha @ MAAT

- "Mater" de Maja Escher, Marta Castelo e Virgínia Fróis @ Pavilhão Branco

- "Metamorfoses - Os Rios Transbordam e Desabam ..." de Ilda David @ Sociedade Nacional de Belas Artes

- "Morphosis" de Catarina Nunes e Vanessa Barragão @ MU.SA - Museu das Artes de Sintra

- Mundo Flutuante: estampas japonesas «ukiyo-e» @ Fundação Calouste Gulbenkian

- "Mural da Felicidade" de Carolina Caldeira @ Avenidas - Um Teatro Em Cada Bairro

- "Objectos Intemporais, Delicadas Intimidades" de João Duarte @ Fábrica das Palavras

- "Panorama" de Daniel Blaufuks @ Galeria Vera Cortês

- "Rui Chafes e Alberto Giacometti. Gris, Vide, Cris" @ Fundação Calouste Gulbenkian

- "Terra Mineral Terra Vegetal" de Duarte Belo @ Biblioteca Nacional de Portugal

O que mais gostei de ler em 2023


FICÇÃO:
- "Alguns Preferem Urtigas" de Junichirõ Tanizaki
- "Cerromaior" de Manuel da Fonseca
- "Mãe" de Pearl S. Buck
- "Maina Mendes" de Maria Velho da Costa
- "Manhã e Noite" de Jon Fosse
- "Mil Sóis Resplandecentes" de Khaled Hosseini
- "Misericórdia" de Lídia Jorge
- "Sob a Estrela do Outono" de Knut Hamsun
- "Um Cão no Meio do Caminho" de Isabela Figueiredo
- "Uma Paixão Simples" de Annie Ernaux




NÃO FICÇÃO:

- "A Era do Homem Forte" de Gideon Rachman
- "Adopção Tardia" de Maria Sequeira Mendes
- "Confrarias de Portugal" de Ana Catarina André e Marisa Cardoso
- "Fé, Esperança e Carnificina" de Nick Cave e Sean O´Hagan
- "Football Leaks" de Rafael Buschmann e Michael Wulzinger
- "Os Engenheiros do Caos" de Giuliano Da Empoli




POESIA E OUTROS GÉNEROS:

- "Cadernos do Verão" de Manuel Matos Nunes
- "Caixa Inglesa" de Olga Gonçalves
- "Campo Aberto" de Sebastião da Gama
- "Canina" de Andreia C. Faria
- "Ervas" de João Miguel Fernandes Jorge
- "Insolúvel Flautim" de Manuel Matos Nunes
- "O Árabe do Futuro 1" de Riad Sattouf
- "O Azul Imperfeito - Livro de Horas V (Pessoa em Llansol)" de Maria Gabriela Llansol
- "O Livro das Coisas Ardidas" de Emanuel Jorge Botelho
- "Os Pássaros Brancos e Outros Poemas" de W. B. Yeats
- "Os Passos em Volta" de Herberto Helder
- "Obra Poética I" de António Ramos Rosa
- "Obra Poética II" de António Ramos Rosa
- "Pequeno Tratado das Figuras" de Manuel Gusmão




FOTOGRAFIA E ARTES

- "Artur Pastor - Portugal país de contrastes"
- "Entre as Águas" de João Mariano
- "Fluvial" de Tito Mouraz

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

"A Nossa Casa" de Sebastião Da Gama

 "A luz acesa
(petróleo débil)
e tu inquieta, feliz, à minha espera.
Cismam livros de versos sobre a mesa.
Sonolentos, os cravos da varanda
cabeceiam nos vidros.

Ando lá fora.
(Lá fora, a ventania,
a noite, o frio dos Astros,
a Poesia decerto ...)

A luz débil, insistes no bordado.
Os nossos filhos dormem
(levantaste-te agora para vê-los ...).

Irónica, a Poesia
sabe que ando lá fora a procurá-la,
indiferente ao vento e à noite fria."



Sebastião Da Gama em "Campo Aberto"
Ática, Janeiro de 1999
Páginas 110 e 111

"Plenitude" de Sebastião Da Gama

 
"Sorri, sorriste. O Mundo era pequeno.
Mas bastava. Cabia nele, intacto,
o encantamento pleno
que te detinha ali, junto de mim,
que nos detinha ali, serenos, puros,
longe da multidão, longe do Tempo
- rio que passava ao largo e nós ficávamos."



Sebastião Da Gama em "Campo Aberto"
Ática, Janeiro de 1999
Página 108

"O Cais" de Sebastião Da Gama

 "Já o cais não é de pedra,
de tanto sentir o Mar.
Já não é, a pedra, lisa:
já ganha forma de velas
pandas de vento e de orgulho;
já deixou de ser branquinha,
p´ra ser azul como as águas.

Já o cordame, que sonha
noite e dia sobre o cais,
o tem o sonho mudado
em algas prenhes de iodo.
Degraus de pedra se animam
e pelas ondas se atrevem
- botes sem mestre, perdidos,
sem outro leme que o gosto
de ir pelas ondas adentro.

Marujos que o nunca foram,
assentadinhos no cais
desde a hora do nascer,
quem foi que disse que tinham
raízes naquelas pedras?
- Já lhes despontam nas costas,
já por ares e mares os levam,
asas leves de gaivota.

Cada traineira que passa
convida o cais a sair.
Já o cais não é de pedra.
O sal moldou-lhe uma quilha,
as ondas o encurvaram,
os limos o arrastaram
p´ra lá de todo o limite,
e o cais cedeu ao convite
de ser um barco sem mestre.

Lá vai perdido nas ondas
e não lhe importa a chegada.
Deitou a bússola ao Mar.
Fez uma estaca do leme,
que atesta o sítio em que foi.
Voltou as costas à terra
e o seu destino cumpriu-se,
que era partir e mais nada."



Sebastião Da Gama em "Campo Aberto"
Ática, Janeiro de 1999
Páginas 87 e 88

"Carruagem de Terceira" de Sebastião da Gama

 "O Amor tinha sido
havia muito tempo.
(Seu cabelo era preto
e branco o seu vestido.)

O seu vestido é preto.
O seu cabelo é branco.
Vai sentada no banco
mesmo em frente do meu.

Ao lado, um vulto de homem
que é a memória viva
da força já antiga
que lhe agitava o seio.

Falam só do presente.
Mas suas mãos cruzadas
é nas coisas passadas
que poisam, meigamente.

Um halo de inocência
e de serenidade
- não a breve grinalda
de lírios ou de rosas -

lembra o amor sem posse
de onde lhes vem o ar
de deuses que se amaram
em dias que não morrem."



Sebastião Da Gama em "Campo Aberto"
Ática, Janeiro de 1999
Páginas 85 e 86

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Fotografando Palavras (X)


Mansardas

Quartos de mansarda têm tectos baixos
Inclinados como o meu pensamento
E neles ouvem-se bem as tempestades
Ficam no último andar de hotéis antigos
E graníticos sem varandas para o mar
Quartos de mansarda têm cadeirões
Abandonados e vazios com a forma do teu corpo
Junto a janelas exíguas com cortinas curtas
Quartos de mansarda têm camas por desfazer
Amantes ausentes e noites longas
Ficam mais perto do céu
Com virgens assexuadas
E analfabetos do amor como hóspedes
Dos quartos de mansarda avistam-se
Anjos caídos nos telhados das cidades
Porque perderam as asas.





Texto: Ana Paula Jardim
Fotografia: Paula Abreu Silva

Do projecto de Paulo Kellerman, fotografar palavras, aqui 😊

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

"Ilha" de Emanuel Jorge Botelho

 para o Manuel de Freitas


"guardamos, no linho, o doer do tempo.
o mar é a nossa cicatriz."


Emanuel Jorge Botelho em "O Livro Das Coisas Ardidas"
Averno, Julho de 2023
Página 48

"Onze Linhas Do Meu Endereço" de Emanuel Jorge Botelho

 para o Giuseppe


"pelo mar eu sempre soube
coisas de segredo,
como se por ele me chegasse 
a lisura do grito,
ou o riso de deus.

aprendi, com o meu pai,
que as ondas vêm do céu,
que são linhas que o céu desenha.

deve ser por isso,
que o mar sabe tanto do silêncio,
sabe quase tudo.



Emanuel Jorge Botelho em "O Livro Das Coisas Ardidas"
Averno, Julho de 2023
Página 47

"Acto de Contrição, ou quase" de Emanuel Jorge Botelho

 
"o que me atormenta tem a ver
com a saudade e a memória,
tudo coisas a que a alma dá guarida,
sem que o tempo fale disso com o lume.

eu só queria ter o silêncio alinhado com o medo,
e um pouco de água brava para dar a cada hora.

talvez, assim, o meu morrer fosse mais limpo,
sem a sombra, calada, do perdão."



Emanuel Jorge Botelho em "O Livro Das Coisas Ardidas"
Averno, Julho de 2023
Página 37

"Versos Do Desconsolo VI" de Emanuel Jorge Botelho

 para Paul Celan


"ter do tempo a rosa mais perfeita,
e vê-la cair, exausta,
rente aos dedos que há no medo.

desenhar disso o sudário mais inteiro,
e a sua sombra."



Emanuel Jorge Botelho em "O Livro Das Coisas Ardidas"
Averno, Julho de 2023
Página 23