segunda-feira, 26 de abril de 2021

 
" ... certas perguntas são feitas apenas para tornar mais explícita a ausência de resposta ..."


" Não se pergunte portanto ao poeta o que pensou ou sentiu, precisamente para não ter de o dizer é que ele faz versos."


" ... a sensibilidade das pessoas tem recônditos tão profundos que, se por eles nos aventurarmos com ânimo de tudo examinar, há grande perigo de não sairmos de lá tão cedo."


" ... a solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não é uma árvore no meio duma planície onde só ela esteja, é a distância entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz, ..."


" A coisa mais inútil deste mundo é o arrependimento, em geral quem se diz arrependido quer apenas conquistar perdão e esquecimento, no fundo, cada um de nós continua a prezar as suas culpas, ..."




"O Ano da Morte de Ricardo Reis" de José Saramago
Editorial Caminho, 14ª edição
Páginas 51, 102, 118, 220 e 282

domingo, 25 de abril de 2021

Mulheres E Árvores

 
"Quando as árvores começam a vestir-se
as mulheres começam a despir-se
Quando as árvores começam a despir-se
as mulheres começam a vestir-se"



"A Matéria Escura e outros poemas" de Jorge Sousa Braga
Assírio & Alvim
1ª edição, Março de 2020
Página 41

O Cérebro

 
"O cérebro tem dez milhões de células em contacto
umas com as outras e dez triliões de conexões

Tanta conexão
e tanta solidão"




"A Matéria Escura e outros poemas" de Jorge Sousa Braga
Assírio & Alvim
1ª edição, Março de 2020
Página 24

domingo, 18 de abril de 2021

 " Com passeios diários e desiguais, aprendi a contar pequenos
Horizontes de flora e de rua, a partir do zero ___ o início
Da manhã. Deixo uma parte em casa, e meu restante corpo
Sai, levando-me as narinas e a testa. Desce as escadas, levanta
O olhar e bebe o ar urbano ______ uma mistura agitada de estribilhos,
Principalmente. Por exemplo, as conversas repetidas, as marcas
Dos carros, os outdoors da publicidade, os cartazes que anunciam
Espectáculos. Rapidamente, a garganta se irrita, acolhendo-se
Às árvores. No Inverno, fixa-se no tronco e nos ramos. Da
Primavera em diante, as copas dão-lhe ar humano. Respirar
Tem tanto de oxigénio quanto de fotograma."




"O Começo De Um Livro É Precioso" de Maria Gabriela Llansol
Assírio & Alvim, Outubro de 2003
Página 285
 " _____________ Estas árvores balouçam na sua hesitação
Mas prosseguem. Os ramos mais altos precipitam-se,
Abrem no ar pousadas. Os mais baixos ocupam. Sol não
Falta. Há apenas a curva do caminho com incidências
Drásticas na sua respiração. Sim, há ainda as concorrentes,
As sementes ininterruptas, e o incompreensível desprezo
Dos humanos. Parasceve não diz. Se o cortarem, não
Reagirá _________ « Por que não entendeis a leveza de prosseguir?»




"O Começo De Um Livro É Precioso" de Maria Gabriela Llansol
Assírio & Alvim, Outubro de 2003
Página 190
 " ___ Do fim para o princípio lê-se de uma maneira;
Do princípio para o fim lê-se de outra. Se
se ler indiferentemente do princípio para o fim
E do fim para o princípio, resta-nos um imenso
Mar. Não estamos, todavia, a salvo. Apenas
Continuamos a nadar.
___ Que naufrágio é esse?
___ O dos genes, minha senhora."




"O Começo De Um Livro É Precioso" de Maria Gabriela Llansol
Assírio & Alvim, Outubro de 2003
Página 120

sábado, 17 de abril de 2021

 "Mal a manhã arde, nela acendo a minha chama,
Procurando que o sopro da vida a não apague.
Escrever me chama. Por inteiro minha atenção deponho
A vossos pés__ imagens nuas ____, hoje uma casca
De árvore. A intensidade substitui o tempo, a serenidade,
O espaço, pois a luz da chama, minha nova extensão
Espiritual, corre para a casca da árvore Que escreve.
Corre e sinto-me vagabunda, num errático sem qualquer
Relação comigo, somente com a árvore que desperta
Para o profuso florescimento dos seus efeitos. É difícil 
Compreender a simplicidade emocional. A sua cor é
Quase sempre azul (mas nem sempre) e sempre
Sentada aos pés das imagens nuas ________________"




"O Começo De Um Livro É Precioso" de Maria Gabriela Llansol
Assírio & Alvim, Outubro de 2003
Página 40

29 de Setembro de 2016

 
"É esplêndida a floração das anémonas-do-japão, dos cosmos coreanos e dos açafrões outonais. Este ano, eu trouxe comigo da Coreia muitas sementes de plantas para o meu jardim - sobretudo sementes de perilha ou sésamo silvestre Deulkkae, Kkaennip (em japonês, Egoma). As suas folhas têm um sabor delicioso. Envolvo nelas um pouco de arroz com pasta de miso e levo-as à boca. O aroma é magnífico. Aroma a terra, à sua profundidade e à sua ocultação. O quente do arroz combina-se numa harmonia perfeita com o picante da folha de sésamo. Há muitas receitas de Deulkkae. As folhas temperadas com molho de soja sabem muito bem. São um dos meus pratos favoritos.
Muito saborosa é também a tempura com Kkaennip. A fina e estaladiça crosta de polme encerra um aroma inebriante que se desprende na boca. No meu livro Abwesen [Ausência], escrevi:

A tempura obedece igualmente ao princípio do vazio. Não tem essa consistência pesada que é típica dos fritos em óleo da cozinha ocidental. O óleo a ferver tem por única função transformar a finíssima camada de farinha que cobre a verdura ou o marisco numa estaladiça porção de vazio. E o recheio adquire do mesmo modo uma leveza deliciosa. Quando se usa para a tempura uma folha de sésamo, como é costume na Coreia, acrescentada ao óleo a ferver, a folha dissolve-se num verde quase incorpóreo e muito aromático. Com efeito, é lamentável que ainda não tenha ocorrido a algum cozinheiro a ideia de fazer a tempura com uma folha de chá. Surgiria assim uma delícia feita de mágico aroma de chá e de vazio, ou até mesmo um delicioso prato de ausência."




"Louvor da Terra" de Byung-Chul Han
Relógio D´Água, Janeiro de 2020
Páginas 84 e 85

sexta-feira, 16 de abril de 2021

 
"O digital significa numérico. O numérico desmitifica o mundo e priva-o de poesia e de romantismo. Arrebata-lhe todo o mistério, toda a estranheza, e transforma tudo em conhecido, em banal, em familiar, em like e em idêntico. Tudo se torna comparável e, portanto, identificável. Perante a digitalização do mundo seria necessário devolver ao mundo o seu romantismo, redescobrir a terra e a sua poética, devolver-lhe a dignidade do misterioso, do belo, do sublime.
(...)
O nome latino da dedaleira é Digitalis. A palavra digital refere-se ao dedo - em latim, digitus, termo com o qual se aparenta etimologicamente também a palavra índice, que designa o dedo que se emprega sobretudo para contar. A cultura digital faz com que de certo modo o homem se atrofie até se transformar num pequeno ser com carácter de dedo."




"Louvor da Terra" de Byung-Chul Han
Relógio D'Água, Janeiro de 2020
Páginas 26 e 61
 "O tempo do jardim é um tempo do diferente. O jardim tem o seu próprio tempo, do qual eu não posso dispor. Cada planta tem o seu próprio tempo específico. No jardim cruzam-se muitos tempos específicos. Os açafrões-de-outono e os açafrões-de-primavera parecem semelhantes, mas têm um sentido do tempo completamente diferente. É espantoso como cada planta tem uma consciência do tempo muito marcada, talvez maior do que a do homem, que hoje de certo modo se tornou atemporal, pobre de tempo. O jardim torna possível uma experiência temporal intensa."




"Louvor da Terra" de Byung-Chul Han
Relógio D' Água, Janeiro de 2020
Página 22

quinta-feira, 15 de abril de 2021

 
"O homem vulgar, aquele a quem chamamos o ser humano comum, vive momentos de poesia em cada dia da sua vida; o que acontece é que não se dá conta disso, porque se em alguma ocasião improvável se detém a pensar na poesia é para a considerar pouco menos do que uma absurda piroseira para efeminados, débeis mentais e gentes ociosas incapazes de viver. 
(...)
O que faz falta é uma poesia relevante. Uma poesia intimamente relacionada com a vida real de cada ser humano; uma poesia que "crie dependência"; uma poesia tão necessária como um cigarro, o primeiro café, o jornal de cada manhã. As pessoas não querem paternalismo, nem divagações mentais, nem exibicionismo barato; querem ver a sua própria vida reflectida no que lêem. Se se lhes oferecesse uma poesia que cumprisse esse simples requisito, não só conseguiríamos que se formassem filas diante das livrarias como também algo mais, algo que tantos escritores afirmam desejar: a "humanização" dos nossos semelhantes através da literatura."




Roger Wolfe [Inglaterra/Espanha, 1962-...]
em "O Universo Está Pintado À Mão - Uma Antologia Fanática" de Luís Filipe Parrado
Língua Morta, Junho de 2020
Páginas 156 e 157

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Sempre Odiei A Subtileza

 "Voltaste a deixar
as minhas malas à porta
como um conselho subtil
de um bom amigo.

Sinceramente,
preferia ver voar
os jarros chineses da tua mãe.
Sempre odiei a subtileza
e tu sabe-lo.

Não sejas tonta.
No fim de contas
se eu me for
quem é que te trará insegurança."




Santiago Núnez Pedregosa [Espanha, ?-?]
em "O Universo Está Pintado À Mão - Uma Antologia Fanática" de Luís Filipe Parrado
Língua Morta, Junho de 2020
Página 158

Chegada

 "Feliz o homem que chega a um porto
Deixando para trás mares e tempestades,
Cujos sonhos estão mortos ou não nasceram,
E se senta e bebe na cervejaria de Bremen,
Feito o caminho, agora em paz.
Feliz o homem que é apagada chama,
Feliz o homem que é areia no estuário,
Que largou a carga e enxugou a fronte
E descansa à beira do caminho.
Não teme nem deseja nem espera,
Apenas olha fixamente o sol a pôr-se."




Primo Levi [Itália, 1919-1987] 
em "O Universo Está Pintado À Mão - Uma Antologia Fanática" de Luís Filipe Parrado
Língua Morta, Junho de 2020
Página 146

terça-feira, 13 de abril de 2021

 "Fazer amor contigo
É como beber água do mar.
Quanto mais bebo
Mais sedento fico,
Até que nada pode abrandar a minha sede
A não ser beber o oceano inteiro."




(Este é um dos "poemas de amor de Marichiko", a figura central de uma jovem japonesa que vivia em Kyoto criada por Kenneth Rexroth).
em "O Universo Está Pintado À Mão - Uma Antologia Fanática" de Luís Filipe Parrado
Língua Morta, Junho de 2020
Página 112
 "Só agora com a geada cobrindo a cabeça,
quando temo que os sinos dobrem por mim,
só agora que os violinos estão muito longe
compreendo quem é o poeta: o poeta é aquele
que começa sempre de novo."



Izet Sarajlic [Bósnia-Herzegovina, 1930-2002]
em "O Universo Está Pintado À Mão - Uma Antologia Fanática" de Luís Filipe Parrado
Língua Morta, Junho de 2020
Página 80

segunda-feira, 12 de abril de 2021

Na Vossa Vida, Dizeis, Não Houve Lágrimas Nem Nostalgia Sob Os Ulmeiros

 
"Na vossa vida,
dizeis,
não houve lágrimas nem nostalgia sob os ulmeiros.

Jamais escreveste uma carta de amor
nem pensaste em suicídio.

Como sabeis então que haveis vivido?"




Izet Sarajlic [Bósnia-Herzegovina, 1930-2002]
em "O Universo Está Pintado À Mão - Uma Antologia Fanática" de Luís Filipe Parrado
Língua Morta, Junho de 2020
Página 79

Se A Observas A Dormir E Sorri

 "Todo o mundo deveria ser simples.
Simplicidade não é simplismo, não é facilidade,
é sombra cáustica, veneno que turva
o copo, prego que lacera e ofende a carne.
Aqueles que negam a simplicidade aconselham
o obscuro, celebram o complexo. Mas todo
o obscuro aspira a ser simples, o complexo
torna-se claro se sabemos clarificar a incógnita.
Pelo contrário, a simplicidade obscurece a noite,
adormece e sonha. Só Deus sabe
o que sonha a simplicidade. Se a observas a dormir
e sorri adivinhas cavalos selvagens sobre
pradarias azuis. Se faz caretas a esfinge
lança-se no vazio com os olhos vendados
e levanta voo quando está quase a cair.
A simplicidade empresta-lhe asas, envolve o
mundo com uma pergunta, importam-lhe
pouco as interpretações. A tempestade é
simples, o glaciar é simples, a primavera
é simples, até o amor é simples. Oxalá
este poema seja simples."




Eduardo Chirinos [Peru, 1960-2016]
em "O Universo Está Pintado À Mão - Uma Antologia Fanática" de Luís Filipe Parrado
Língua Morta, Junho de 2020
Página 63
 
"A poesia serve para tudo: substitui a anestesia
no dentista e não tem efeitos secundários.
Em doses muito concentradas (p. ex. Keats + Vallejo) pode
provocar calafrios na espinal medula,
estremecimentos, palidez
e uma sensação de caminhar no vazio.
Nesses casos recomenda-se que se deixe uma flor seca entre as folhas
assinalando o culpado até que outra alma piedosa
daqui a cem anos
arrisque a pele na aventura."




David Turkeltaub [Chile, 1936-2008]
em "O Universo Está Pintado À Mão - Uma Antologia Fanática" de Luís Filipe Parrado
Língua Morta, Junho de 2020
Página 55

Há Uma Luz Dentro De Mim

 
"Seja de dia ou de noite
trago sempre dentro de mim
uma luz.
No meio do ruído e da desordem
trago silêncio.
Trago 
sempre luz e silêncio."




Anna Swir [Polónia, 1909-1984]
em "O Universo Está Pintado À Mão - Uma Antologia Fanática" de Luís Filipe Parrado
Língua Morta, Junho de 2020
Página 23

sábado, 3 de abril de 2021

 
"Vamos diretos ao assunto e comecemos a discutir uma das questões mais difíceis, nomeadamente a resposta à pergunta: o que é a natureza? São as florestas tropicais virgens ou as montanhas remotas com picos inalcançáveis? Os prados alpinos onde pastam vacas castanhas com grandes badalos ao pescoço? E as minas abandonadas, onde se formaram lagos e as rãs coaxam agora alegremente, também contam? Provavelmente há tantas definições quanto pessoas que gostam da natureza. Uma definição simples de base é que natureza é o oposto de cultura - ou seja, tudo o que as pessoas não criaram nem modificaram. Esta definição traça fronteiras rígidas e claras sobre aquilo a que pode chamar-se natureza. Outras definições veem as pessoas e as suas atividades como parte da natureza. Desta perspetiva, natureza e cultura não podem obviamente ser separadas.
E é exatamente este o problema do movimento moderno de conservação: o que vale realmente a pena proteger, e o que conta como ameaça ou mesmo perturbação?"




"A Sabedoria Secreta da Natureza" de Peter Wohlleben
Editora Pergaminho
1ª edição, Novembro de 2019
Página 155
 
"Assim, voltamos à questão: alimentar os pássaros em comedouros é ou não mau para eles? Não estaremos a interfir com os processos naturais quando o fazemos? Sem a nossa ajuda, Koko podia ter morrido de fome há muito, e outro corvo ou uma ave de outra espécie podia ter preenchido o vazio deixado por ele no ecossistema. Já cobrimos os prós e contras do impacto direto no ambiente, mas ainda não falámos aqui de outro aspecto: a empatia. A empatia é uma das forças mais poderosas na área da conservação e consegue alcançar mais do que muitas regras e regulamentos. Pense nas campanhas contra a caça à baleia ou contra a chacina de focas bebés - o ultraje público teve a dimensão que teve apenas porque todos sentíamos empatia pelos animais. E, quanto mais próximos de nós estiverem os animais, maior a empatia."




"A Sabedoria Secreta da Natureza" de Peter Wohlleben
Editora Pergaminho
1ª edição, Novembro de 2019
Página 105

sexta-feira, 2 de abril de 2021

 
"A solidão é uma das primeiríssimas experiências de humanidade que fizemos. Lembro aquilo que escreveu a pedopsiquiatra Françoise Dolto: «A solidão dos bebés existe. Eles têm necessidade de que lhes falem, de que lhes cantem, mesmo se ao longe. Ouvem uma voz, não estão completamente sozinhos. O ser humano precisa de companhia. O espaço de um ser humano, desde o nascimento, precisa de ser povoado pela presença psíquica de outro ser para o qual ele existe.»




"O Que É Amar Um País" de José Tolentino Mendonça
Quetzal Editores
1ª edição, Agosto de 2020
Página 94
 
" ... muitos se começam a interrogar, com razão, sobre como será depois da Covid-19.
Nas ciências humanas, há dois axiomas esperançosos para o tempo de reconstrução que se reabrirá. O primeiro é o «axioma de Quarantelli». Enrico Quarantelli (1924-2017) foi um importante sociólogo norte-americano, que se especializou no estudo de reação aos desastres. As suas conclusões sublinham que as catástrofes geram mais cooperação do que conflito, avizinham as pessoas como nunca, democratizam a vida social e fortalecem a identidade comum. Há novas organizações (ad hoc ou mais estáveis) que se criam, reforçando a coesão da sociedade para uma resposta concreta e eticamente qualificada. O segundo é o «axioma de Cyrulnik». Boris Cyrulnik é um neuropsiquiatra francês, do origem judaica, que viu os pais morrer em Auschwitz e tem hoje mais de oitenta anos. A sua tese sobre o trauma é que ele, se não é certamente reversível, pode ser, no entanto, reparável. Tal implica não pretender regressar ao estado precedente, mas pacientemente passar para uma etapa nova. A ferramenta que Cyrulnik propõe é a resiliência, uma categoria que ele recupera da física. Trata-se ali da capacidade de um metal resistir a choques sem se despedaçar. Também nós humanos precisamos de resiliência para que, uma vez feridos, isso não nos retire completamente a confiança na vida, nem obstaculize para sempre a alegria de que somos herdeiros."




"O Que É Amar Um País" de José Tolentino Mendonça
Quetzal Editores
1ª edição, Agosto de 2020
Páginas 76 e 77

quinta-feira, 1 de abril de 2021

 
"Figuras inespessas: transparentes,
assim o tempo nos faz, sem darmos conta,
e às palavras que dizemos simples ecos
de vozes que jamais em nós soaram.

Habita-nos por dentro: esse deserto,
e o vento que nas dunas configura
ora palácios de ouro, ora ruínas,
de alguma caprichosa arquitectura.

Nada é real: nem os palácios, nem as dunas,
nem o vento, o deserto, as suas ruínas,
nem o ouro ou as vozes que se escutam.
Irreais somos nós: feitos de tempo."




"A Ciência das Sombras" de Bernardo Pinto de Almeida
Relógio D'Água Editores, Janeiro de 2018
Página 187
 
"Naquele imenso instante: em que os teus olhos
os meus tocaram, de fogo ou de silêncio,
em muda combustão petrificaram
numa estátua de lava o que era vento."



"A Ciência das Sombras" de Bernardo Pinto de Almeida
Relógio D'Água Editores, Janeiro de 2018
Página 186

Sombras

 
"Voltam-se as sombras sobre nós.
Coisas soltas, costumes muito antigos
acompanham-nos os gestos, desde perto,
desenham figuras nas paredes.

A casa sossegou. O vento, veloz,
em cada recanto obscuro faz jazigos
onde se perde o olhar, antes aberto.
Crescem líquenes, raros musgos verdes.

As janelas fecharam-se. Vazio
o quarto. Perguntas por fazer
suspendem-se da voz,
para sempre remetida ao seu silêncio.

Nada pois a temer:
sombras somos nós."




"A Ciência das Sombras" de Bernardo Pinto de Almeida
Relógio D'Água Editores, Janeiro de 2018
Página 127