quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Li "Um cão deitado à fossa" e ...

 

«e eu que me esqueci de cultivar: família, inocência,
                                                                   delicadeza,
                  vou morrer como um cão deitado à fossa!»

                       Herberto Helder, A Morte sem Mestre



Nestes versos de Herberto Helder, encontrou Carla Pais o mote para o seu segundo romance. Diz a autora que "Um cão deitado à fossa é para quem gosta de romances com muitos invernos dentro".
A história centra-se num casal típico das aldeias portuguesas, Urbano e Ofélia. Urbano, homem desfeito por uma família disfuncional, reproduz o comportamento do pai, destruindo o amor da mulher e afastando de si os filhos.
Se por um lado, as suas acções e atitudes geram sentimentos de repulsa e antipatia, por outro lado não é difícil empatizar com aquele que, em tempos, foi uma criança desabrigada do amor de seu pai.

"Desde pequeno que Urbano trazia a dor da rejeição alojada no peito, nunca ele entendeu aquele desabrigo da parte do pai, então, um dia, dentro da sua inocente pequenez, perguntou à mãe,
porque me odeia ele, mãe?
porque sorri o meu irmão, quando esta casa é tão feia nos dias de sol?
A mãe, tão renegada como aquele filho, pegava Urbano pela mão e levava-o à charneca onde os pinheiros cresciam viçosos e limpavam o ar do rosto e dos olhos, sentava-o sob as copas das árvores e com uma pedra martelava os pinhões secos que se escondiam por baixo do mato, das carumas velhas que apodreciam e se faziam estrume. Enchia-lhe a boca desses frutos secos ou de amoras que apanhava entre as silvas das veredas só para o manter calado, sossegado das ideias rijas que lhe apavoravam os dias. Mas Urbano, acossado pelo desafeto, indiferença e aversão, mantinha a pergunta,
porque me odeia ele, mãe?
Na verdade, nunca a velha lhe quis responder, emudecia diante do espanto que se formava no rosto do filho, dizia-lhe apenas que os pinhões e as amoras eram frutos de Deus, que abençoavam as almas infelizes, que comesse aquilo até a barriga rebentar de fúrias e engulhos, que um dia havia de crescer forte e tomar conta daquilo tudo. Que o sofrimento entalado no coração era como uma prece a limpar a alma, que não tivesse medo, pois Jesus também havia sofrido pelos pecados dos homens."

Num registo forte e intenso, a linguagem, de grande beleza, é simultaneamente crua e poética, distante mas sonhadora.
Também belíssimos os títulos dos capítulos, retirados do interior dos mesmos:
"Dos pinhais todos que se lhe entornaram nos ombros"
"Um pasmo inteiro dentro dos olhos"
"A manhã chegou na desordem da luz"
"A vida escorrendo viscosa, enlameada na memória"
"Quando o silêncio da noite se encosta ao ventre"
"Um céu negro dentro do peito"

Carla Pais escreve sobre a crueza do sofrimento humano, o mal nas pessoas, os afectos vazios, as infâncias de frieza e maus tratos, "as cicatrizes que se carregam na vida", as relações de poder, a religião como amparo de certos comportamentos.
Mas também sobre redenção. Também sobre a esperança no lado bom do ser humano. Também sobre o não determinismo da infância sugerindo a possibilidade da quebra de padrões familiares disfuncionais. Também, e sobretudo, "como se amam os filhos".

A sua escrita tem um tom muito próprio.
"É uma escrita dura, mas não ausente de sorrisos." 

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Fotografando Palavras (II)



Anda, vamos perder-nos no infinito.



Texto: Fernando Alagoa
Fotografia: Paula Abreu Silva

Do projecto de Paulo Kellerman, fotografar palavras, aqui 😊