quarta-feira, 15 de agosto de 2018

O Lugar dos Solitários

"Que o lugar dos solitários
Seja um lugar de ondulação perpétua.
 
Quer seja em pleno mar
Na negra e verde nora,
Ou nas praias,
Que nunca cesse
O movimento, ou o ruído do movimento,
O renovar do ruído
E múltiplos prolongamentos;
 
E, sobretudo, do movimento das ideias
E da sua incansável iteração,
 
No lugar dos solitários,
Que há-de ser um lugar de ondulação perpétua."

Wallace Stevens  em "Harmónio"
"O seu pai era soldador, e achava que qualquer pessoa capaz de passar o dia inteiro a olhar para simbolozinhos numa página era porque estava a reprimir outros impulsos. Mas para Gordon ler era o seu impulso. Tornava o mundo maior. No liceu ele apaixonou-se por Dostoievski, uma literatura que vinha ao encontro das suas melancólicas dúvidas. Dostoievski não acreditava em nada a não ser no mundo untuoso e terra a terra onde os seres humanos vagueavam, lutavam, corrompiam e matavam. Mas Dostoievski era cristão, e as pessoas que lutavam e vagueavam nos seus romances haviam perdido o seu caminho, ao passo que Deus não. Dostoievski era algo de vasto - de dimensão universal - , um universo que possuía uma ordem, mas não uma ordem fixa e artificial como a dos gregos. Era um difuso reino de caóticas provações, e Gordon sabia que quando o lia penetrava no território da verdade."

Rachel Kushner  em "O Quarto de Marte"

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Eu sou uma pergunta

"Há um momento em que percebemos que as perguntas nos deixam mais perto do sentido, da abertura do sentido, do que as respostas. Que as respostas são úteis, sim, que precisamos delas para continuar a viver, mas que a vida transforma as próprias respostas em perguntas.
(...)
Deveríamos dedicar mais tempo a escutar essas perguntas que pulsam no nosso interior, soterradas no atordoamento dos dias, omitidas pelo pragmatismo ou pelo medo, adiadas para um momento ideal que depois nunca é.
(...)
Quando, mais tarde, nos tornarmos repetidores sonâmbulos de respostas feitas, carregados de saberes, previsões e mapas, é importante pelo menos recordarmos a nós mesmos que houve já um tempo em que as perguntas foram o contacto (consciente e fulgurante) com a vida não predeterminada. E quem sabe se essa memória nos alentará a recomeçar, como se cada pergunta fosse uma possibilidade de nascer?"


José Tolentino Mendonça  em "O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas"

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Shakespeare

"Shakespeare criou o mundo em sete dias.
 
No primeiro dia fez o céu, as montanhas e os abismos da alma.
No segundo dia fez os rios, os mares, os oceanos
E os restantes sentimentos -
Que deu a Hamlet, a Júlio César, a António, a Cleópatra e a Ofélia,
A Otelo e a outros,
Para que fossem seus donos, eles e os seus descendentes,
Pelos séculos dos séculos.
No terceiro dia juntou todos os homens
E ensinou-lhes os sabores:
O sabor da felicidade, do amor e do desespero,
O sabor do ciúme, da glória e assim por diante,
Até esgotar todos os sabores.
 
Por esse tempo chegaram também uns indivíduos
Que se tinham atrasado.
O criador afagou-lhes compassivo a cabeça,
E disse que só lhes restava
Tornarem-se críticos literários
E contestarem a sua obra.
O quarto e o quinto dia reservou-os para o riso.
Soltou os palhaços
Para darem cambalhotas,
E deixou os reis, os imperadores
E outros desgraçados divertirem-se.
Ao sexto dia resolveu alguns problemas administrativos:
Forjou uma tempestade,
E ensinou ao rei Lear
O modo de usar uma coroa de palha.
Com os restos da criação do mundo
Fez o Ricardo III.
Ao sétimo dia viu se havia algo mais a fazer.
Os directores de teatro já tinham coberto a terra de cartazes,
E Shakespeare concluiu que depois de tanto esforço
Também ele merecia assistir ao espectáculo.
Mas antes disso, esfalfado de todo,
Foi morrer um pouco."

Marin Sorescu  em "Simetria"