quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Canela

 "Cresci num país de estações, cortadas a machado, brutais e definitivas. E o inverno não é a menor de entre elas que encerra os anos como se fecha uma porta de um quarto pejado de ouro e cristal. Nele sonha-se. Nele canta-se. Nele come-se e bebe-se. Esses festins e repastos de dezembro regados com vinhos da Alsácia, Gewürztraminer * e Riesling **, e aguardentes de pera, de ameixa amarela ou de framboesa, não acabarão a bem dizer senão por altura da Candelária, numa valsa de crepes quentes. A canela é então a convidada exótica. Quase nunca é usada no resto do ano, a não ser de tempos a tempos numa compota de maçãs ou, em fins de agosto, sobre uma tarte de quetsches ***. Com os primeiros frios ela dá a ver o seu rosto apimentado. Tiram-se de boiões de vidro os seus pauzinhos que parecem pergaminhos que as chamas tivessem tostado e enrolado sobre si mesmos. Reduzem-se a pó num almofariz. Presente de Rei Mago. O Oriente instala-se nas cozinhas trazendo-lhes o seu cortejo e as suas miragens que derrama sobre os móveis em Formica e no velho oleado. Areias, pastéis, pãezinhos, brioches, linzertortes ****, kouglofs *****, todos polvilhados de canela e por ela sublimados. A cozinha faz-nos mergulhar na Europa e no tempo, viajantes enfarinhados e gulosos. Eu quis durante anos estabelecer uma geografia do strudel, esse subtil doce enrolado numa massa fina, com maçãs e passas na sua versão mais autêntica, e que desenha, mais ou menos, as fronteiras do antigo Império austro-húngaro já que se pode degustá-lo tão bem em Viena como em Veneza, Trieste, Bucareste, Varsóvia, Praga, Budapeste ou Brno, mas igualmente em Nova Iorque onde tantos emigrados das ruínas e das cinzas vieram esperançar-se de novo na vida. A bem dizer, através deste doce, é a canela que me possui, a sua entontecedora música olfativa de inverno e de festa, estupefaciente lícito próprio para tornar elegante e fina a mais francesa das massas, para dar-lhe na verdade a beleza de um acento. Mesmo o vinho tinto corrente, por pouco que o deixem levantar fervura longamente numa caçarola num canto do forno, depois de lhe ter junto açúcar, uma rodela de laranja, uma pitada de cravinho e um punhado de canela, se transfigura graças a ela num diabo enfeitiçado que queima as mãos à volta do copo no qual o servem, aquece a boca e a garganta, despeja o fogo no ventre, faz nascer risos e luzes ao canto dos olhos e nas faces felizes que o frio do exterior enrubesceu. As línguas põem-se a tecer contos e fantasmagorias. Batem-se as lembranças, as da vida, as da História e as dos romances, como cartas de jogar. Então começa-se a falar subitamente de minarete, de tundra e de princesas reclusas. De caravançarai, de pequenos cavalos e de estepes. De tabaco de mascar, de espadas quebradas, de Imperador transido no seu castelo, de couro gelado e de soldados que se mantêm fiéis, afogados numa água russa, quando tudo está já perdido, o mundo está morto e eles jamais o saberão."


* Vinho branco aromático, feito de uma casta de uvas de pele rosada. Tem um grau alto de açúcar, com um vistoso buquê de líchia. Também pode ter aromas de rosa, maracujá e notas florais.

** Casta de uva branca originária da região da Alsácia, que se estendeu à Alemanha e Áustria. Produz vinhos de alta qualidade.

*** Espécie de ameixa

**** Tarte de origem austríaca, cujo nome provém da cidade de Linz. É coberta e decorada com uma malha de tiras da massa.

***** Bolo típico da Alsácia




"Perfumes" de Philippe Claudel
Sextante Editora
1ª edição, Abril de 2014
Páginas 34 e 35

Sem comentários:

Enviar um comentário