sábado, 26 de julho de 2025

"Turistas" de Maria Judite de Carvalho

 
"Os turistas em grupo sempre me deslumbraram e me fizeram uma certa inveja. É que nunca percebi bem se eles são gente se são aves em migração estival. Tal como as aves, estão mais interessados nas estátuas e no milho do que nos seres humanos. Tal como elas, chegam, estão e partem em bando. São ainda lindamente coloridos e inexpressivos, iguais uns aos outros e, quando falam, é em grupo, e então palram e então piam, quem os entende?
Nunca fiz uma viagem organizada e essa é uma das minhas frustrações. Estar num país sem entrar nele, aflorá-lo ao de leve, esvoaçá-lo, ver só o que foi combinado com antecedência por outros, apagar implacavelmente tudo o resto, apagar os seres humanos e todo o sofrimento dos seres humanos, que maravilha. Contentar-se com essa alegria em grupo que é igual em todo o mundo, desejá-la. Estar de passagem. Estar e já ter partido.
Visitar os monumentos mas às vezes não ver os monumentos, nem isso. Porque às vezes não há tempo, almoça-se numa cidade, vai-se jantar a outra. E fotografa-se à pressa para ver depois. Olha-se para a máquina por falta de tempo para olhar a máquina e o monumento. E então prefere-se a máquina de viajar no passado. E mais tarde, já em casa, de pantufas, ou em reunião de amigos, mostram-se fotografias e slides e todos soltam muitas exclamações.
Também há turistas isolados, uma tristeza. Aquele japonês, por exemplo, em Paris. Lá adiante a torre Eiffel, e ele com a sua bela máquina fotográfica japonesa, muito perfeita, muito complicada, muito cara decerto, no respetivo tripé. Retificou e voltou a retificar a posição da lente, depois foi pôr uma caixinha de fósforos no solo, um pouco adiante, perto da máquina, longe da torre, entre ambas. Levou um tempo ... Quando tudo ficou perfeito e até mais que perfeito, colocou-se no lugar da caixinha, pôs-se muito quieto, muito direito e depois, de repente, rasgou a boca num sorriso de total felicidade. Clique, disse a máquina na língua das máquinas. Ótimo, pensou decerto o japonês em japonês. Arrumou tudo cuidadosamente e foi-se embora. Talvez fosse sorrir junto de outro monumento, quem sabe se noutra cidade, noutro país. Sorrir para a eternidade dos álbuns de fotografia ou das máquinas de projeção."
- O Jornal, 4-8-78



Maria Judite de Carvalho em "Obras Completas de Maria Judite de Carvalho v"
(Este Tempo - Os Novos Deuses)
Editora Minotauro, Setembro de 2019
Páginas 51 e 52

segunda-feira, 21 de julho de 2025

"O Aroma do Tempo" de Byung - Chul Han (III)

 "Ser livre não significa somente ser independente ou não ter compromissos. Não são a ausência de laços e a falta de enraizamento que nos fazem livres, mas antes as ligações e a integração. A carência absoluta de relações gera medo e inquietação. A raiz indo-germânica fri, da qual derivam as formas 'livre', 'paz' e 'amigo' (frei, Friede, Freund) significa 'amar' (lieben). Por conseguinte, originariamente, 'livre' significava 'pertencente aos amigos ou aos amantes'. A pessoa sente-se livre numa relação de amor e de amizade. O compromisso, e não a sua ausência, é o que nos torna livres. A liberdade é uma palavra relacional por excelência. A liberdade não é possível sem um apoio que a sustente."



Byung - Chul Han em "O Aroma do Tempo - Um ensaio filosófico sobre a arte da demora"
Relógio D'Água Editores, Fevereiro de 2016
Página 47

"O Aroma do Tempo" de Byung - Chul Han (II)

 
"Também a sensação de que o tempo passa muito mais rapidamente do que antes tem a sua origem no facto de as pessoas, hoje em dia, já não serem capazes de demorar-se e de a experiência da duração se tornar cada vez mais insólita.
(...)
É a experiência da duração, e não o número das vivências, que faz com que uma vida seja plena. Uma veloz sucessão de acontecimentos não dá lugar a duração alguma. Uma vida a toda a velocidade, sem perdurabilidade nem lentidão, marcada por vivências fugazes, repentinas e passageiras, por mais elevada que seja a 'quota de vivências', continuará a ser uma vida curta."



Byung - Chul Han em "O Aroma do Tempo - Um ensaio filosófico sobre a arte da demora"
Relógio D'Água Editores, Fevereiro de 2016
Páginas 49 e 50

domingo, 13 de julho de 2025

"O Aroma do Tempo" de Byung - Chul Han (I)

"Hoje em dia, as coisas ligadas à temporalidade envelhecem muito mais rapidamente do que antes. Tornam-se instantaneamente em passado e, assim, deixam de captar a atenção. O presente reduz-se a picos de atualidade. Já não dura.
(...)
A causa da contração do presente ou desta duração minguante não se deve, ao contrário do que muitas vezes erradamente se pensa, à aceleração. A ligação entre a perda da duração e a aceleração é muito mais complexa. O tempo precipita-se como uma avalanche porque deixou de encontrar seja o que for que o sustente no interior de si próprio. Cada ponto do presente, entre os quais já não existe qualquer força de atração temporal, faz com que o tempo se desenfreie, com que os processos acelerem sem direção alguma - e é precisamente a falta de qualquer direção que faz com que não possamos falar de aceleração. A aceleração, no sentido estrito, pressupõe caminhos unidirecionais.
(...)
Não é a eterna repetição do mesmo o que dota o tempo de sentido, mas a possibilidade da mudança."



Byung - Chul Han em "O Aroma do Tempo - Um ensaio filosófico sobre a arte da demora"
Relógio D'Água Editores, Fevereiro de 2016
Páginas 17, 18 e 26