quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Construção e Impermanência

"Se não há papel, não há livro. Se não há água, não há gelo. Se não há início, não há fim. A existência de um depende muito do outro, por conseguinte, a verdadeira independência não existe. Devido à interdependência, se um componente - a perna de uma mesa, por exemplo - sofre uma pequena mudança que seja, então a integridade do todo está comprometida e torna-se instável. Ainda que pensemos poder controlar a mudança, a maior parte do tempo isso não é possível por causa das incontáveis influências que desconhecemos e das quais não temos consciência. E, por causa desta interdependência, a desintegração de todas as coisas, no seu estado corrente ou original, é inevitável. Toda a mudança contém em si um elemento de morte. Hoje é a morte de ontem.
(...)
Mantendo a consciência dos fenómenos compostos, tornamo-nos conscientes da interdependência. Reconhecendo a interdependência, reconhecemos a impermanência. E, quando recordamos que as coisas são impermanentes, há menos probabilidades de nos deixarmos escravizar por suposições, crenças rígidas (tanto religiosas como seculares), sistemas de valores ou fé cega. Tal consciência impede-nos de sermos apanhados em todos os tipos de dramas pessoais, políticos e relacionais. Começamos a saber que as coisas não estão e nunca estarão inteiramente sob o nosso controlo e assim não há expectativa de que se passem de acordo com as nossas esperanças e medos. Não há ninguém para acusar quando as coisas correm mal porque existem inúmeras causas e condições a responsabilizar. Podemos dirigir esta tomada de consciência das regiões mais afastadas das nossas imaginações até a níveis subatómicos. Nem nos átomos nos podemos fiar.
(...)
Podemos pensar que os políticos liberais e de esquerda são políticos iluminados, mas eles podem ser de facto a causa do fascismo e dos skinheads, sendo complacentes e promovendo mesmo a tolerância para com os intolerantes, ou protegendo os direitos individuais daqueles cujo único fim é destruir os direitos individuais das outras pessoas. A mesma imprevisibilidade aplica-se a todas as formas, sensações, percepções, tradições, amor, confiança, desconfiança e cepticismo - mesmo às relações entre mestres espirituais e discípulos, e entre os homens e os seus deuses.
Todos estes fenómenos são impermanentes. Consideremos o cepticismo, por exemplo. Houve uma vez um canadiano que incarnava acerrimamente um céptico. Gostava de assistir a ensinamentos budistas, a fim de poder discutir com os mestres. Sendo na verdade bastante versado na filosofia budista, os seus argumentos eram fortes. Deleitava-se com a oportunidade de citar o ensinamento budista de que as palavras de Buda devem ser analisadas e não pressupostas como verdadeiras. Alguns anos mais tarde, tornou-se o devoto seguidor de um famoso médium. O céptico senta-se diante do seu guru, com lágrimas correndo dos olhos como rios, devoto a uma entidade que não tem uma ponta de lógica para oferecer. Fé ou devoção têm a conotação geral de ser inabaláveis, mas, tal como o cepticismo e todos os fenómenos compostos, são impermanentes.
(...)
Reconhecer a instabilidade de causas e condições leva-nos a compreender o nosso próprio poder de transformar obstáculos e tornar possível o impossível. Isto é verdadeiro em todas as áreas da vida. Se não temos um Ferrari, podemos bem criar as condições para ter um. Enquanto houver um Ferrari, há a oportunidade de possuirmos um. De igual modo, se queremos viver mais, podemos escolher parar de fumar e fazer mais exercício. Há uma esperança razoável. O desespero - tal qual, o seu oposto, a esperança cega - é o resultado de uma crença na permanência.
Podemos transformar não apenas o nosso mundo físico, mas também o nosso mundo emocional, convertendo, por exemplo, a agitação em paz mental, mediante o abandono da ambição, ou convertendo um baixo amor-próprio em confiança, mediante uma acção movida pela bondade e pela filantropia. Se todos nos determinarmos a colocar os nossos pés nos sapatos dos outros, cultivaremos a paz nas nossas casas, com os nossos vizinhos e com os outros países."

Dzongsar Jamyang Khyentse  em "O Que Não Faz De Ti Um Budista"

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