sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Sofrimento

"É bom para um artista compreender o conflito e o stress. Essas coisas podem dar ideias. Mas, garanto-vos, se tivermos bastante stress, não seremos capazes de criar. E, se tivermos bastante conflito, só vai atrapalhar a nossa criatividade. Pode compreender-se o conflito, mas não tem de se viver nele.
Nas histórias, nos mundos em que podemos entrar, existe sofrimento, confusão, escuridão, tensão e raiva. Há assassínios; há todo o tipo de coisas. Mas o cineasta não tem de estar a sofrer para mostrar sofrimento. Pode mostrá-lo, mostrar a condição humana, mostrar conflitos e contrastes, mas não é preciso passar pessoalmente por isso. Somos os orquestradores, mas não estamos lá dentro. Deixe que sejam as suas personagens a sofrer.
É senso comum: quanto mais o artista sofre, menos criativo vai ser. É menos provável que goste do seu trabalho e menos provável que seja capaz de fazer um trabalho realmente bom.
Aqui, as pessoas podem referir Vincent Van Gogh como exemplo de um pintor que fazia um óptimo trabalho apesar - ou por causa - do seu sofrimento. Gosto de pensar que van Gogh teria sido ainda mais prolífico e ainda maior se não estivesse tão limitado pelas coisas que o atormentavam. Não creio que tenha sido a dor que o fez tão grande - acho que a sua pintura lhe trouxe a pouca felicidade que ele talvez tenha tido.
Alguns artistas acreditam que a raiva, a depressão, ou estas coisas negativas, lhes dão uma certa força. Pensam que precisam de se agarrar a essa raiva e medo para os poderem colocar no seu trabalho. E não gostam de ideia de ficarem felizes - dá-lhes vontade de vomitar. Acham que isso lhes faria perder a sua força ou o seu poder.
Mas, leitor, não perderá a sua força se meditar. Não perderá a sua criatividade. E não perderá o seu poder. Na verdade, quanto mais meditar e se transcender, mais as coisas crescerão, e sabê-lo-á. Ganhará muito maior compreensão de todos os aspectos da vida quando mergulhar no seu interior. Dessa forma, o entendimento cresce, o reconhecimento cresce, forma-se uma perspectiva maior e a condição humana torna-se cada vez mais visível.
Se for artista, é preciso conhecer a raiva sem ser limitado por ela. Para criar, é preciso ter energia; é preciso ter lucidez. É preciso ser capaz de capturar ideias. É preciso ser suficientemente forte para enfrentar pressões e stress incríveis neste mundo. Portanto, faz todo o sentido cuidarmos com carinho do lugar de onde vêm essa força, essa clareza e essa energia - mergulharmos no nosso interior e animá-lo. É uma coisa estranha, mas é verdade, na minha experiência: a beatitude é como um colete à prova de bala. É uma coisa protectora. Se tivermos felicidade suficiente, é invencibilidade. E, quando aquelas coisas negativas começam a soltar-se, podemos capturar mais ideias e vê-las com maior compreensão. Entusiasmamo-nos mais facilmente. Temos mais energia, mais clareza. Então, podemos ir realmente trabalhar e transpor essas ideias para um meio ou outro."



"Em Busca Do Grande Peixe - Meditação, Consciência e Criatividade"
David Lynch
Estrela Polar, Outubro 2008
Páginas 103 e 104

Sem comentários:

Enviar um comentário