sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Leon De Modena

"as tuas palavras estão 
a apodrecer dentro dos teus livros
as que tu escreveste
onde as escreveste
e tudo o que ficou nas entrelinhas
e tudo o que não escrutinaram
os oficiais da inquisição
os teus amigos em cargos importantes
os príncipes que noutros dias
mais soalheiros se sentaram
para te ouvir na sinagoga

as tuas mãos estão a desaparecer dos teus livros
dedos cegos correm pelas lombadas
com um resquício de um gesto de ancião
a quem a vista falha

o som de um sopro
a fala de alguém absorto no seu ofício
enche a brancura da pedra

grave, masculino
subindo como um apontamento
uma nota marginal na imensa pauta do tempo
traça a sua rota através de uns quantos lugares
entre o gueto velho e o gueto novo
as tuas mãos estão a desaparecer
de dentro destes gestos que são o teu trabalho
e mais um destes poemas líricos
remediará nada

um nevoeiro espesso desce sobre os campos
é doce o cansaço acumulado e a letargia
a segura lentidão de um ritual tão repetido
que não pertence nem à memória nem à inteligência
mas apenas à intuição de que alguns
lugares continuam a existir
até para lá do esforço de qualquer vontade

e é agora a hora de procurar uma palavra
que pese completamente
com a aresta certa para irromper
como corrente pelo meio destas sílabas
que a tua presença não atravessa já

porque digamos que tu pertences ao passado
como uma dessas frases banais
lugares-comuns que existem em todas as línguas
procurando com ferocidade nova
dizer esta velha brutalidade
ontem não te vi em babilónia
não na multidão no mercado
não nas duas ou três ruas principais
entre o banco e os correios
tu não estás protegido
mãos nenhumas fazem ressoar este sino
que deve ter rebatido metálico contra o ar
vozes ecoam e ecoam pelas ruas
entre seda amarela e vermelha
volteiam lâmpadas de papel
repara como é longa esta noite
e como brilha na confusão
essa tuba que teria feito num dia mais claro
ressoar a promessa do ar

como os momentos mudam os objectos
nem os traços do teu rosto nem o tom da tua voz
alguém em cada instante
não se repetindo nem antes nem depois
em curva nenhuma da memória ou da imaginação
e muito menos num golpe de dados
onde a atenção se suspende
e desenlaça com a concentração gasta num pormenor
perdido e recuperado na memória
como a confirmação
de uma coisa ao mesmo tempo familiar e estranha

quando voltares atrás hás-de perguntar-te
se pode bem ter sido a morte deste detalhe
o que antes de tudo incendiou
essa outra destruição
porque os profetas como os poetas buscam
um começo antes do começo
e o teu trabalho era afinal só
encontrar a lei que carregasse o teu nome
que provasse a utilidade de mais um homem prático
na luz destas ruas muito pela manhã quando tudo começa
as prestações da casa e as visitas ao domicílio
tantas coisas te ocuparam entre uma frase e outra
que quando te tornaste a sentar nessa escrivaninha
o pó tinha coberto os teus livros e a tua cadeira
os teus filhos tinham roubado as tuas canetas
a tinta estava seca nos tinteiros

mas não era escala o que tu procuravas
quando reclamaste do hábito o teu grão de incerteza

assim não se repetirão as pequenas luzes acesas
que enchem as janelas nas ruas estreitas
nem o banho que tomaste ao entardecer
nem a sala desta casa onde esta noite
comerás o teu jantar

uma a uma estas ruas estão a desaparecer
de dentro das tuas mãos
porque um corpo e um espaço não são o mesmo
tudo isto há-de parecer tão impossível mais tarde
quando e onde chegarmos à repetição
tão certo como a permanência de alguém não ser um lugar
ou não ser sequer a última pedra da memória
a estilhaçar as janelas do tempo"



Tatiana Faia  em "um quarto em atenas"
Tinta-da-china, Janeiro de 2018
Páginas 115 a 118

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