sexta-feira, 2 de agosto de 2024

"As Estações da Vida" de Agustina Bessa Luís (III)

 
"A gare de São Bento causa uma impressão grandiosa como nenhuma outra em Portugal. O movimento da multidão, os que se apressam e os que correm, os rostos ansiosos e outros tocados de mil expressões, de cautela, de expectativa e de susto, mostram uma variedade infinita de paixões que às vezes não atingem sequer a mudança de expressão. Há quem tenha ar de fugitivo. De abandonado, de predador, de pacato transeunte entre duas vias. Os azulejos são magníficos, assinados por Jorge Colaço, dum azul de Delft verdadeiramente luminoso e profundo. É ainda o tema do rio Douro, o barco que espera ser carregado de pipas, o barco ainda na margem, estando de pé a barqueira com a mão em pala sobre os olhos e já sentadas as passageiras, as feirantes, com arrecadas de ouro e o companheiro de todos os climas, o guarda-chuva de algodão preto. São quadros duma genial composição que referem os trabalhos populares, os moleiros, as mulheres que vão buscar água ao chafariz, os namoros, o descanso na vida que tem os seus lazeres entre dois passos na história do trabalho. Melhor do que férias é aquele pousar do cântaro na fonte enquanto chega a vez de o encher. Adivinha-se o falatório, a má-língua que tem sabor de crítica e de ensino. Os azulejos contam toda uma poesia que não é épica, é o viver de todos os dias, é um sermão sem sotaina, é um contrato social sem filosofia."



Agustina Bessa-Luís em "As Estações da Vida"
Quetzal Editores, 2002
Página 16

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