segunda-feira, 26 de março de 2018

As Fogueiras de S. João

"O nosso destino, chumbo fundido, não pode mudar
nada pode fazer-se.
Deitaram o chumbo fundido na água debaixo das estrelas e
as fogueiras podem arder.
 
Se ficares nua diante do espelho à meia-noite
vês
vês o homem passar no fundo do espelho
o homem dentro do teu destino que governa o
teu corpo,
dentro de solidão e do silêncio o homem
da solidão e do silêncio
e as fogueiras podem arder.
 
À hora em que findou o dia e não começou o outro
à hora em que se cortou o tempo
aquele que desde agora e antes do princípio governava
o teu corpo
tens de encontra-lo
tens de procura-lo para que pelo menos
outro alguém o encontre, quando tiveres morrido.
 
São as crianças que acendem as fogueiras e gritam
diante das labaredas dentro da noite quente
(Houve acaso alguma fogueira que não fosse acesa
por uma criança, oh Eróstrates)
e deitam sal dentro das chamas para que crepitem
(Como olham estranhamente as casas de súbito para nós,
cadinhos das pessoas, quando as afagar
um reflexo).
 
Mas tu que conheceste a graça da pedra no rochedo
batido pelo mar
o entardecer em que a serenidade caiu
ouviste de longe a humana voz da solidão
e do silêncio
dentro do teu corpo
aquela noite de S. João
quando se apagaram todas as fogueiras
e estudaste a cinza debaixo das estrelas."

* Entre os vários rituais adivinhatórios, na aldeia de infância do poeta na Ásia Menor (para lá dos habituais relativos a estas fogueiras), destacam-se dois que têm a ver com o título e com o poema: 1) Uma rapariga deita chumbo fundido num vaso com água e a forma que toma o chumbo ao solidificar indica o negócio ou a profissão do seu futuro marido. 2) A rapariga despe-se à meia-noite e fica nua diante do espelho, pedindo a S. João que lhe revele o nome do seu futuro marido; o primeiro nome a ouvir ao acordar na manhã seguinte virá a ser o nome dele.
 
Yorgos Seferis  em "Poemas Escolhidos"

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