terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Divagações Amargas

Cogito, ergo sum - Descartes


"Tenho em mim dúvidas imensas
manchadas todas de aflições intensas ...
Cá dentro, alternadamente morro e ressuscito
sendo, como sou, em mim mesmo um proscrito!
Penso mas não me compreendo.
A interrogação que sou, não respondo, não a entendo.
Nem mesmo penso, creio eu.
Que espírito este! que destino o meu ...

Sou, somatório de dúvidas, dúvida lancinante.
Sinto-me em passeio interior um cavaleiro andante
arrastando-se, já cansado, no pó de cada estrada,
estranho a si próprio, confuso, quase nada ...
Tanta dúvida, tanto sentimento,
tanta percepção difusa, embrião de pensamento,
Não vem só duma alma com certeza;
Uma só não fazia tal tristeza,
não entrecruzava mil perguntas,
- que eu sinto voarem todas juntas -,
não vozeava assim; é porque não é só uma.
Serão muitas? Serão mil almas? Talvez nenhuma.
Meu pobre íntimo que doloroso é pensar!
Quão infeliz o que vive a duvidar ...
Diz-me! Não há mais calma dentro dum rochedo?
Numa flor, numa folha, em todo o arvoredo?
Crês tu que o Sol brilharia incendiado,
tão belo e radioso, se duvidasse, se fosse desgraçado?"


Jorge de Sena  em "Post-Scriptum II - 1º volume"
Imprensa Nacional - Casa da Moeda
Página 59

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