terça-feira, 3 de novembro de 2020

Poesia

"Eu cá também não gosto: há outras coisas importantes além deste desconchavo.
Quando, porém, a lemos, desdenhando-a por completo, achamos, apesar de
tudo, nela um lugar do genuíno.
Mãos prestes a agarrar, olhos
prestes a dilatar, cabelo prestes a eriçar,
se for o caso, são coisas importantes não por via

de uma interpretação sonante que as possa moldar mas por via de serem 
úteis. Quando se tornam tão derivativas que ficam ininteligíveis,
o mesmo se aplica a todos nós, que
não admiramos o que não podemos entender; o morcego
que se sustém de cabeça para baixo ou que procura algo que

comer, os elefantes a querer passar, um ginete a rebolar, um lobo incansável
debaixo de uma árvore, o crítico impassível a crispar a pele
como um cavalo mordido por pulga, o adepto
de baseball, o estatístico -
e não vale
discriminar contra "documentos empresariais e

manuais escolares"; são todos fenómenos importantes. Há que distinguir
porém: quando enaltecidos pelos semi-poetas, o resultado não é poesia;
será só quando os poetas entre nós puderem ser
"literalistas da imaginação" - sobre
a insolência e a trivialidade, só quando puderem apresentar,
a exame, jardins imaginários com sapos de verdade, é que ela será
nossa. Entretanto, quando se exige, por um lado,
a matéria-prima da poesia em
bruto, a cru e,
por outro, aquilo que é
genuíno, então é porque sempre interessa a poesia."



"O Pangolim e Outros Poemas" de Marianne Moore
Relógio D' Água Editores, Novembro de 2018
Páginas 37 e 38

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