quarta-feira, 28 de maio de 2014

" ... a hipermodernidade não é estruturada por um presente absoluto, mas sim por um presente paradoxal, um presente que não para de exumar e de «redescobrir" o passado.
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A voga do passado lê-se, ainda, no sucesso dos objectos antigos, da «china» a antiguidades, do retro, do vintage, dos produtos rotulados como «autênticos», que despertam a nostalgia. Cada vez mais, as empresas fazem referência à sua história, exploram o seu património, divulgam o seu passado, lançam «produtos comemorativos» para fazer «reviver» os tempos passados. As marcas comerciais apresentam artigos oriundos do património e muitas marcas propõem «receitas à moda antiga» e produtos inspirados em tradições ancestrais. Na sociedade hipermoderna, a antiguidade e a nostalgia tornaram-se argumentos de venda, ferramentas de marketing.
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Este regresso em força do passado constitui uma das faces do universo do hiperconsumo experiencial: já não se trata somente de ter acesso ao conforto material, mas de vender e comprar reminiscências, emoções que evoquem o passado, lembranças de dias e de épocas considerados mais faustosos. Ao valor de uso e ao valor de troca acrescenta-se, agora, o valor emocional-memorial associado aos sentimentos nostálgicos. Um fenómeno indissociavelmente pós e hipermoderno. «Pós» porque se volta para o antigo. «Hiper» porque há, agora, um consumo comercial da relação com o tempo, expansão da lógica comercial investindo no território da memória.
Embora se exprima o gosto pelo passado, a vida quotidiana é, mais do que nunca, regida (na higiene, na saúde, no lazer, no consumo, na educação) pela ordem variável do presente. Os produtos comestíveis exibem «autenticidade», mas são comercializados segundo técnicas comerciais de massa, são adaptados aos gostos contemporâneos, são fabricados em função de normas actuais de higiene e segurança. Reabilitam-se os imóveis antigos dos centros das cidades, dotando-os, contudo, de todo o conforto moderno.
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A tradição já não convoca à repetição, à fidelidade e à revivescência do que já está feito: ela tornou-se um produto de consumo nostálgico ou folclórico, piscadela de olho ao passado, objecto-moda.
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Nos nossos dias, o passado aparece cada vez mais como um cenário, um referencial de qualidade ou de segurança de vida. Porque «o autêntico» tem sobre as nossas sensibilidades um efeito tranquilizador: associados a um imaginário de proximidade, de convivialidade, de «bons velhos tempos», os produtos à moda antiga (a aldeia, o artesão, o amor ao ofício), vêm conjurar a inquietude dos neo-consumidores obcecados com a industrialização alimentar."

Gilles Lipovetsky & Sébastien Charles  em "Os Tempos Hipermodernos"

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