segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Pensamentos Encadeados: Os Pombos Guerreiros

"Matthieu Ricard expôs as suas ideias.
- Temos estado a falar muito acerca da possibilidade de mudança. Como é que isso acontece no contexto do treino contemplativo? Sabemos que as emoções duram segundos, que os humores duram, digamos, um dia, e que o temperamento é algo que é moldado ao longo de anos. Por isso, se queremos mudar, obviamente precisamos primeiro de agir sobre as emoções, o que ajudará a mudar os nossos humores, o que, por fim, acabará por cristalizar como um temperamento modificado. Por outras palavras, devemos começar por trabalhar com os eventos instantâneos que ocorrem na nossa mente. Como Lorde Chesterfield disse uma vez: se cuidarmos dos minutos, as horas cuidarão de si mesmas.
» Como é que procedemos em termos da experiência em primeira mão?
O período refractário e tudo o resto será um pouco abstracto para alguém que quer lidar com as suas emoções no momento presente. Por isso, um desses pontos-chave tem a ver com a forma como ocorre o encadeamento dos pensamentos, a forma como um pensamento leva a outro.
» O meu professor contou-me a história de um antigo chefe guerreiro no Tibete oriental que renunciara a todas as suas actividades marciais e mundanas e partira para uma caverna para meditar. Aí permaneceu durante alguns anos. Um dia, muitos pombos pousaram em frente à sua caverna e ele deu-lhes alguns grãos. Mas, enquanto os observava, o bando de pombos fê-lo recordar-se das legiões de guerreiros que tinha tido sob o seu comando e esse pensamento fê-lo recordar-se das suas expedições, ficando novamente furioso a pensar nos seus antigos inimigos. Estas recordações cedo invadiram a sua mente e ele desceu para o vale, encontrou os seus antigos companheiros e foi novamente para a guerra!
» Isto exemplifica a forma como um pequeno pensamento pode crescer e tornar-se numa obsessão de corpo inteiro, como uma minúscula nuvem branca incha até se transformar numa poderosa nuvem negra entrecruzada por raios. Como é que conseguimos lidar com isso?
» Quando falamos de meditação, a palavra utilizada no Tibete significa efectivamente «familiarização». Precisamos de nos familiarizar com uma nova forma de lidarmos com o surgimento de pensamentos. No início, quando um pensamento de ira, desejo ou inveja surge, não estamos preparados para ele. Por isso, numa questão de segundos, aquele pensamento deu azo a um segundo e a um terceiro pensamentos, e cedo a nossa paisagem mental fica invadida por pensamentos que solidificam a nossa ira ou ciúme e, nessa altura, é demasiado tarde. Tal como quando uma centelha pega fogo a toda uma floresta: estamos em maus lençóis.
» A forma básica de intervirmos chama-se «olhar novamente» para um pensamento. Quando um pensamento surge, precisamos de observá-lo e olhar novamente para a sua fonte. Precisamos de investigar a natureza desse pensamento que parece tão sólido. Enquanto estamos a olhar fixamente para ele, a sua solidez aparente derreter-se-á e esse pensamento desaparecerá sem originar uma cadeia de pensamentos. A questão não é tentar bloquear o surgimento dos pensamentos (tal não é possível de qualquer forma), mas não os deixar invadir a nossa mente. Precisamos de fazer isto vezes sem conta porque não estamos habituados a lidar com pensamentos dessa forma. Somos como uma folha de papel que ficou enrolada durante muito tempo. Se a tentarmos alisar numa mesa, ela irá enrolar-se novamente assim que levantarmos as mãos. É aqui que entra o treino.
» Podemos interrogar-nos acerca daquilo que as pessoas fazem em retiros, permanecendo sentadas durante oito horas por dia. Pois é isso exactamente que estão a fazer: estão a familiarizar-se com uma nova forma de lidar com o surgimento de pensamentos.
» Quando já nos habituámos a reconhecer os pensamentos assim que surgem, é como conseguirmos descobrir rapidamente um conhecido numa multidão. Quando um pensamento poderoso de atracção forte ou de ira surge e nós sabemos que irá provavelmente levar à proliferação de pensamentos, agora somos capazes de o reconhecer: «Oh, aí vem aquele pensamento.» Isso é o primeiro passo, ajudando-nos muito a evitar sermos assolados por esse pensamento. Quando nos habituámos a isso, o processo de lidarmos com os pensamentos torna-se muito mais natural. Não precisamos de travar qualquer luta interior nem de aplicar antídotos específicos a cada pensamento negativo, porque sabemos como fazê-los desaparecer sem deixarem rastro. Os pensamentos soltam-se sozinhos. O exemplo que se costuma dar é o da cobra. Se, por acaso, der um nó no seu próprio corpo, a cobra consegue desfazer esse nó sem esforço e sem precisar de ajuda externa. Por fim, chegará o momento em que os pensamentos aparecem e desaparecem como um pássaro a atravessar o céu, sem deixar rastro. O outro exemplo que se costuma dar é o de um ladrão a entrar numa casa vazia. Não há nada a perder para o dono e nada a ganhar para o ladrão.
» Esta é uma experiência de liberdade. Não nos tornamos simplesmente apáticos, como um vegetal, mas conseguimos subjugar os nossos pensamentos, que deixam de conseguir dominar-nos. Tal acontece apenas através de um treino continuado e de uma experiência autêntica.
» É assim também que podemos gradualmente desenvolver certas qualidades que se tornarão numa segunda pele, num segundo temperamento. Vejamos o exemplo da compaixão. Houve um grande eremita do século XIX chamado Patrul Rinpoche. Uma vez disse a um dos seus discípulos para ir para uma gruta e meditar durante seis meses, pensando apenas na compaixão. No início, o sentimento de compaixão por todos os seres é, com certeza, forjado, artificial. Depois, gradualmente, a mente vai ficando cheia de compaixão; esse sentimento permanece na nossa mente sem requerer qualquer esforço.
» Após seis meses, o meditador estava sentado na abertura da gruta e viu um cavaleiro solitário no vale, mais abaixo, a cantar. O yogi teve alguma espécie de premonição clara, um sentimento forte, de que o homem ia morrer dentro de uma semana. Depois, o contraste entre a visão daquele homem a cantar alegremente e a súbita intuição que o yogi teve deixou-o infinitamente triste pela existência condicionada, por aquilo a que os budistas chamam samsara. Nesse momento, uma compaixão genuína e avassaladora impregnou a sua mente e nunca mais a abandonou. Tornou-se uma segunda pele, o verdadeiro significado da meditação. Ver o homem foi o que desencadeou o sentimento, mas a familiarização que tinha sido conseguida anteriormente foi essencial. O incidente não teria tido o mesmo efeito se ele não tivesse passado seis meses a impregnar-se de compaixão.
» Estamos a falar de modos de ajudar a sociedade. Se aspiramos a contribuir com algo para a nossa sociedade, para alcançarmos uma nova visão das coisas, precisamos de começar por nós próprios. Precisamos de decidir transformar-nos e isso pode apenas surgir através do treino e não através de ideias passageiras. Essa é a contribuição que pode advir da prática budista."
 
 
Daniel Goleman  em "Emoções Destrutivas e Como Dominá-las - Um diálogo científico com o Dalai Lama"
Círculo de Leitores, 2006
Páginas 264 a 266

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