terça-feira, 29 de outubro de 2019

O Grande Fardo De Palha Do Poeta Comprometido

"tinha escrito um poema tão gratuito
que não valia sequer
as calorias gastas no movimento
dos dedos sobre as teclas do computador

elencava as mais dolorosas notícias do dia
para descair na mais particular
dorzinha mediatizada de um eu visionário
tão comprometido com o real
que a sua fotografia surgia acima
desta meia dúzia de versos anémicos
ou numa sexta-feira à noite
este desprezo de vómito
por alguém se sentir tão facilmente encantado
com o bafo da sua própria inteligência 
em detrimento do que teria chegado
se fossem apenas três linhas da mais banal empatia
de um qualquer empregado de escritório 
queixando-se em lugares-comuns da ruína dos dias
poupando-me ao artifício 
de uma fórmula tão banalizada
que deixou de me importar perceber ao certo
o que é privilégio verbal
mas que podia ser um pouco mais 
do que um poeta parvinho do século XXI
passar a pente fino o global news podcast
por falta de assunto mais popular
do que o espartilho limitado de mais um poema
ou a impressão evidente de que podia
ser isto ou um saco de batatas
ou mais um principiante sucumbe
à baleia branca da inspiração

sacrificando toda uma inteligência de leitor
para nos sentirmos todos contentes
com mais um que desceu ao hades
agradando tão inconsequentemente 
a homens, mulheres e animaizinhos,

podia bem ser não orfeu e eurídice
mas só mais uma rapariga perdida no caminho
numa das 365 variações possíveis
da terra em redor da órbita do sol
pouco seguido de nada
em vez da mais absoluta esterilidade
de uma pretensão a equacionar de novo
mais uma volta na morosa piscina do óbvio:
a grande questão do poeta
enquanto consciência colectiva

tanto e tão bem-intencionado ardor
muito me tem anestesiado
em versos cada vez mais despidos de significado
mais um génio tão original
sucumbe ao lado mais sedutor do prosaico
na certeza de que o seu ímpeto
nos conduzirá a todos
ovelhas à beira do precipício
ao sorriso satisfeito
de uma verdadeira revelação comum

por exemplo:
de que nenhum de nós
quando isto
não é mais do que entretenimento
vale nada"



Tatiana Faia  em "um quarto em atenas"
Tinta-da-china, Janeiro de 2018
Páginas 101 a 103

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