domingo, 18 de agosto de 2019

"Mas, de substantivo, quando nos confrontamos com os temas recorrentes que compõem o Cânone Ocidental, o que há de novo entre Homero e John Ford?
Eu diria quatro coisas.
O protagonismo do Mal, com Shakespeare; a atracção pelo Mal, o fascínio, o prestígio e a grandeza que Shakespeare concede aos personagens que são os intérpretes de um catálogo de paixões maléficas, seres possuídos pela vertigem da maldade e elevados à categoria de grandes personagens, que desafiam a moral e a mortalidade: Ricardo III, Iago, Lady Macbeth e tantos outros que abundam nas suas peças e fazem da perfídia, da intriga, da dissimulação, da perversidade e do crime o seu prazer supremo e insaciável. O Antigo Testamento já era, como disse Saramago, "um manual de maus costumes", mas é a partir de Shakespeare que ficamos a saber definitivamente que o mundo é maléfico e que a História dos homens é um longo caminho de mortos inocentes e de crimes sem castigo.
A segunda originalidade, que se inicia no século XIX e se consagra definitivamente no século XX, é o sexo, que a ficção havia até aí evitado, proscrito, banido do romance e da pintura. A Santa Teresa de Bernini só é possível porque o orgasmo se esconde sob o manto do êxtase espiritual. E Malraux lembrava que, no romance, antes de O amante de Lady Chatterley, o prazer sexual era sempre elíptico, iludido, e que, no tempo de Stendhal, pertencia ainda à literatura clandestina, a que, entretanto, o marquês de Sade (esse personagem shakesperiano, amaldiçoado antes e depois da Revolução) viria a dar a expressão mais desafiadora da moral e dos costumes de que há memória. Malraux chamava a atenção para o facto de que, n'O Vermelho e o Negro, a noite de amor entre Julien Sorel e Madame de Renal é dada, pudicamente, num ponto e vírgula. Mas se, ainda no século XIX, o "divino Marquês", que glorifica o prazer sem limites e desafia Deus e a moral, é ainda clandestino, os grandes libertinos (D. Giovanni, Valmont) entram na galeria prestigiosa dos grandes personagens da ficção; mesmo se, no fim, são punidos, não deixam de ser, literalmente, sedutores.
Mas, além do mal e do sexo, que novos mistérios do comportamento humano fizeram a sua entrada na ficção? Eu vejo mais dois. A descoberta do subconsciente, isto é, a criação de personagens sujeitos a comportamentos contraditórios, movidos por impulsos que escapam à razão e à sua própria vontade, que vamos encontrar, com uma intuição invulgar, antes de Freud os teorizar, em Dostoievski, Tchékhov, Melville ou Stefan Zweig, e que marcam o romance moderno. Podemos sempre alegar que o comportamento de Édipo inspirou Freud, que Shakespeare já havia criado Hamlet e Iago - Hamlet que duvida de si mesmo e Iago que afirma, como um desafio à inteireza do Cristo: "I'm not what I am!"
Poderíamos incluir nessa descoberta do subconsciente, a confiança que os artistas passam a depositar no trabalho do acaso e do improviso, que se revelam pela primeira vez na "escrita automática", nos cadavre exquis dos surrealistas e nos ready made de Duchamp, mas também no jazz e na pintura de Pollock.
E, por fim, "a morte de Deus". Desde a proclamação de Nietzsche, a ficção moderna tem vivido o silêncio de Deus e o vazio deixado pela sua ausência. "Se Deus não existe, tudo é possível", disse Dostoievski, como poderiam ter dito Iago ou Ricardo III. Mas sem Deus, sem uma ordem no mundo - ou, ao menos, um desejo de ordem, isto é, sem uma desordem que é preciso condenar e combater -, sem alguém a quem pedir contas e com quem medir forças, como faz o capitão Ahab, o mundo é um enorme vazio, onde a razão se perde e a esperança se esvai. É essa angústia que sentem os personagens de Sartre e de Camus, de Kafka e de Beckett. No século XX, não é por acaso, os grandes génios da "Idade do Caos", como lhe chama Bloom, são sobretudo escritores, os mais solitários dos criadores, autores de obras inacabadas ou impublicadas em vida, como a de Kafka, de Musil ou de Pessoa. Ou os escritores do absurdo, como Camus, ou da solidão absoluta, como Beckett."

 
António-Pedro Vasconcelos  em "O Futuro da Ficção"
Fundação Francisco Manuel dos Santos
Páginas 44 a 49

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