terça-feira, 27 de agosto de 2019

"É tempo de tirar as primeiras conclusões.
Eis a primeira: todos estes gigantes são sempre devedores do passado. Mesmo quando se tornam eles próprios, pelo seu génio, os criadores autónomos da sua obra, a verdade é que, dos poemas homéricos e das tragédias gregas às grandes peças de Shakespeare, da grande pintura da Renascença à ópera italiana, do romance francês, inglês e russo do século XIX ao cinema do século passado, todos os autores se reclamam de uma mesma tradição, se copiam e se renegam, de época em época, de país em país, de expressão artística em expressão artística. Miguel Ângelo recria a mitologia judaico-cristã, que ele conjuga, como toda a pintura da Contra-Reforma, com a mitologia greco-romana, e torna-se, com os outros pintores da Renascença e do Barroco, a referência da pintura ocidental - a tal ponto que a "viagem a Itália" passou a ser uma obrigação para qualquer artista que quisesse seguir o rasto dos mestres italianos. Shakespeare, por sua vez, foi beber as suas histórias a vários autores antigos e contemporâneos, e é, ele próprio, uma sombra que paira sobre a invenção romanesca de todos os autores que vieram a seguir a ele; depois de Macbeth, as últimas óperas de Verdi adaptam outros personagens seus: Falstaff e Otelo.
Griffith, que inventou o cinema com O Nascimento de uma Nação, reclamava para a 7ª Arte, numa legenda que fez questão de colocar antes do filme, "a mesma liberdade que tiveram os autores da Bíblia e Shakespeare". Poderia ter acrescentado Dickens e Tolstoi, que foram outros dos seus mestres. E não será John Ford o grande continuador de Homero?
O que nos leva à segunda conclusão: de Homero a John Ford, os grandes criadores voltam sempre aos mesmos temas - o tema do heroísmo e do sacrifício, da falsidade e da mentira, do medo e da coragem, da culpa e da redenção, do ódio e da vingança, da resistência à tirania e às leis iníquas, da viagem e da descoberta, da esperança e da decepção, da amizade e da traição, do amor e dos seus obstáculos. Numa palavra, a luta do Homem contra a adversidade. Sob novas formas, com novos personagens e com novas perspectivas morais, é sempre o Bem e o Mal e a definição que cada época lhes dá, que se hão-de defrontar até ao fim dos tempos.
Terceira conclusão: os grandes momentos em que uma arte floresceu num país e numa época são sempre períodos curtos, de uma ou duas gerações: Dante, Petrarca e Boccaccio, nos primórdios do século XIV; Masaccio, Piero della Francesca e Donatello, no começo do século XV; Rabelais e Montaigne, na França do século XVI; Miguel Ângelo, Rafael e Ticiano, em Roma, na mesma época; Cervantes e Velásquez, em Espanha, e Shakespeare, em Inglaterra, Caravaggio e Bernini, em Roma, nos inícios do século XVII; Rossini, Mozart, Bellini, Donizetti e Verdi, dos finais do século XVIII aos finais do século XIX; como Balzac, Stendhal e Victor Hugo, na França dos princípios do século XIX, e como, mais tarde, Púchkin, Gogol, Dostoiewski e Tchékhov, na Rússia dos últimos Czares; Kafka, Joyce, Beckett, Pessoa, nos primeiros anos do século XX; Griffith, Chaplin, Ford, Welles, ao longo do século passado, em Hollywood; e, depois da II Guerra, Rossellini, Fellini e Visconti, em Itália.
Quarta conclusão: essas épocas correspondem invariavelmente ao período de uma vida humana e percorrem, também elas, a curva que vai do esplendor ao declínio, da esperança à decepção, do vigor e da energia criativa da juventude à maturidade e ao equilíbrio da idade adulta, e depois, ao envelhecimento e ao crepúsculo. E, quase sempre, esses períodos correspondem também ao tempo de vida dos seus principais protagonistas: Miguel Ângelo, Shakespeare, Beethoven, Verdi, Tolstoi ou John Ford. E, por último, a esses períodos curtos em que, nessa forma específica de expressão artística, a ficção renasce, se afirma e se renova, segue-se sempre um intervalo, pelo menos igual, de vazio e de silêncio.
E chegamos então à pergunta que fiz no início: qual será o futuro da ficção neste século XXI, depois de 35 anos de vazio e de silêncio preenchidos pela vulgaridade e pelo ruído? Pode a Europa (e, em geral, o Ocidente) reencontrar o caminho das grandes ficções, que o mesmo é dizer, um destino exaltante, ou terá que esperar, como sempre aconteceu, por uma grande catástrofe ou uma revolução, em todo o caso, um conflito violento, "um parto com dor", como diria Marx que a História se faz, para renascer novamente dos escombros e se libertar da vulgaridade?
Os sinais do presente são inquietantes. Onde está hoje o heroísmo? Onde estão a esperança e a energia, sem os quais não há elã criador? Rossellini, esse visionário impaciente, foi o primeiro a pressentir que a Europa do pós-guerra havia perdido depressa demais o sentido do heroísmo, da solidariedade e do sacrifício, quando fez Europa 51, um filme profético a que ele quis dar uma data precisa (como fizera com Roma, cidade aberta e Alemanha, ano zero), um filme que é como um epitáfio na esperança redentora do pós-guerra.
Mas se a Europa, por milagre, conseguir evitar o caos e se reencontrar com a sua cultura e os seus valores, por que forma se irão manifestar os novos ficcionistas? As novas tecnologias irão oferecer-lhes formas inesperadas de se exprimirem, como aconteceu com o cinema no princípio do século passado? Ou os futuros artistas do Cânone irão retomar as formas antigas: o romance, as artes plásticas ou as artes do palco, o teatro, o "drama in music" (como se chamou à ópera) ou mesmo o cinema? Que meio, velho ou novo, irá permitir o aparecimento de novas ficções federadoras que nos sirvam de espelho e de exemplo, de reflexo e de reflexão, que nos ofereçam modelos de acção e se tornem referências do nosso imaginário, chaves para interpretarmos a realidade e guias para os nosso julgamentos?"
 
 
António-Pedro Vasconcelos  em "O Futuro da Ficção"
Fundação Francisco Manuel dos Santos
Páginas 51 a 58

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