domingo, 11 de agosto de 2019

"Foi sempre a ficção que moldou as civilizações e lhes garantiu prestígio e eternidade, como foi a sua ausência ou o seu declínio que as deixou no esquecimento ou as condenou à decadência; foi a capacidade de imaginação que os criadores tiveram para representar a realidade sob a forma de palavras, de sons ou de imagens, que fez a Atenas de Sófocles, Ésquilo e Eurípedes, a Florença dos Médici, a Roma de Miguel Ângelo e de Bernini, a Inglaterra de Marlowe e de Shakespeare, a Espanha de Cervantes e de Velázquez, a Versalhes de Molière, de Corneille e de Racine, a Viena de Mozart e de Beethoven, a França de Balzac, de Stendhal e de Victor Hugo, a Itália de Verdi e de Puccini, a Rússia de Pushkin e de Gogol, de Dostoievski e de Tolstoi, a Hollywood de Chaplin e de Capra, de Ford e de Howard Hawks. Sob a forma de romances e poemas, de pinturas e esculturas, da ópera, do teatro ou dos filmes, foi sempre a ficção que moldou o imaginário dos homens e consagrou a memória das civilizações.
Daí a minha interrogação: neste limiar do milénio, onde estão as ficções que irão despertar novamente os nossos sonhos e mobilizar as nossas energias? E de onde irão surgir? A Europa tem alguma coisa ainda para nos prometer, para além da exibição turística das suas ruínas e da memória embalsamada de um passado glorioso? E os Estados Unidos terão ainda capacidade de vencer o vírus da descrença e do medo, depois do Vietname e do 11 de Setembro? Ou será que essas grandes ficções irão surgir de outros continentes, assumir outras formas e emergir de outras culturas? As velhas nações adormecidas, como a China ou a Rússia, por exemplo, serão capazes de reatar o seu antigo prestígio e acordar para um novo ciclo criador? Ou será da América Latina, dona de uma literatura romanesca original e abundante, que irão despontar essas grandes ficções que a ajudem a libertar-se, enfim, da opressão e da subalternidade a que foi submetida durante cinco séculos, e que possam servir-nos de guia para este século? E serão outra vez os livros ou os filmes, o teatro ou a música, que irão dar forma a esse despertar ou a essa ressurreição? Ou irão surgir novas formas, até agora desconhecidas, de ficcionar a realidade, como aconteceu com o cinema no começo do século XX?"
 
 
António-Pedro Vasconcelos  em "O Futuro da Ficção"
Fundação Francisco Manuel dos Santos
Páginas 08 a 11

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