quinta-feira, 9 de abril de 2020

Ambivalências do Individualismo

"Somos individualistas, ninguém o duvida. Mas isso é bom ou mau? Durante séculos, o pensamento preocupou-se em demonstrar que o indivíduo é e deve ser soberano: sujeito de um conhecimento que deve saber aplicar correctamente, sujeito definitivamente responsável e juiz das suas acções. A consciência talvez seja uma construção social, mas tem uma entidade pessoal intransferível, capaz de se distanciar do social para o criticar e avaliar. Há já algum tempo que a ética se desenvolve em torno de direitos fundamentais que são, em última análise, direitos individuais, e dos quais o primeiro é a liberdade. Por outro lado, não há ética sem autonomia, sem a consciência do sujeito moral da sua capacidade para criar ou aceitar livremente as suas normas de conduta. De acordo com os princípios éticos mais consolidados, não pode ser em absoluto mau pedir ao indivíduo que o seja de facto, que não deserde da sua liberdade nem renuncie ao dom, estritamente humano, de fazer da sua vida um projecto criativo. Não só não se pode rechaçar a concepção individualista da pessoa: é uma condição e um dever do sujeito moral manter a sua individualidade a salvo de intromissões ilegítimas; é uma condição e um dever do sujeito moral gostar de si próprio: não desprezar a própria valia, antes extrair dela o máximo rendimento.
Mas essa é a linguagem dos filósofos. Na linguagem de todos os dias falamos do individualismo em termos muito diferentes. O individualismo é, para nós, a anti-ideologia, o maior obstáculo para criar e apostar em empreendimentos ou ideais comuns. São individualistas os membros das sociedades liberais avançadas, porque se mostram insolidários, insensíveis em relação às desigualdades, sem qualquer interesse pelos assuntos públicos. O seu egoísmo, a sua escassa cidadania, o seu descuido em relação ao meio ambiente, a sua voluntária ignorância da justiça social evidenciam-se perante qualquer propósito que exija uma preocupação comunitária. Não são apenas individualistas os simples cidadãos que andam despreocupados: também o político o é na medida em que a sua profissão deixou de ser um claro serviço público, para ser um serviço dos interesses de um partido ou de uma classe profissionalizada. E são individualistas sociedades inteiras, precisamente as mais desenvolvidas, que são, por sua vez, as mais indiferentes às misérias daqueles que vivem pior: os países ricos ignoram os pobres, aqueles que têm assegurado o seu bem-estar despreocupam-se facilmente do bem-estar dos outros. O que causa preocupação não é tanto o indivíduo fechado em si e autocomplacente, mas os individualismos colectivistas e tribais cuja única expectativa é a perpetuação do grupo. Seja como for, a mónada leibniziana, que não tinha janelas para assomar ao exterior, é o modelo que melhor se adapta aos nossos cenários.
O panorama é desmoralizador e triste. Numa perspectiva individualista, a humanidade parece empenhada na sua extinção como tal, tão escassas são as manifestações de autêntica humanidade e dignidade. Existem, sem dúvida, mulheres e homens que cumprem satisfatoriamente o papel que lhes foi dado viver, não são más pessoas, mas poucas vezes - talvez só perante situações limite como a morte - fazem o esforço de se distanciar do seu cenário específico e envolver-se no seio de uma circunstância um pouco mais ampla. Mais além do círculo familiar ou profissional, mais além do círculo de amigos e dos círculos lúdicos ou culturais, há outras realidades que deveriam pelo menos excitar a curiosidade de qualquer ser humano. Um mundo tão comunicacional como o nosso deveria ter interesse mais dispersos. Individualismo significa atomização, fechamento na esfera privada e desafecto em relação ao público. E com isso, a democracia vê-se ameaçada nas suas próprias bases. Não ignoramos que as coisas são assim, mas faltam-nos ideias e, sem dúvida, vontade para corrigir esses dados. No que se refere aos filósofos, enquanto uns propõem o regresso a formas de vida comunitárias não de todo claras, ideais que pretendem recuperar algo tão longínquo para nós como a comunidade política grega, outros continuam a construir grandes teorias éticas como se nada tivesse deixado de funcionar e servisse de alguma coisa falar de justiça."



"Paradoxos Do Individualismo"  de Victoria Camps
Relógio D´Água Editores, 1996
Páginas 15 a 17

Sem comentários:

Enviar um comentário