quinta-feira, 30 de julho de 2020

"Dava muito prazer seguir uma linha de pensamento sem ter oposição. Dificilmente seria eu o primeiro a pensar assim, mas era possível ver a história do egoísmo humano como uma série de descidas de categoria a tender para a extinção. Tempos houve em que estávamos entronizados no centro do Universo, com o Sol e os planetas, todo o mundo observável, a girar à nossa volta numa dança de veneração intemporal. Depois, desafiando os padres, a astronomia, impiedosa reduziu-nos a um planeta a girar à volta do Sol, um rochedo entre outros. Mas, ainda assim, continuámos a ser especiais, brilhantemente únicos, nomeados pelo criador como senhores de todas as coisas vivas. Depois, a biologia confirmou que éramos iguais a todos os outros, partilhando uma ascendência comum com as bactérias, os amores-perfeitos, as trutas e as ovelhas. No princípio do século XX, chegou a um exílio ainda mais profundo nas trevas, quando a imensidão do nosso Universo foi revelada e até o Sol se tornou um entre biliões na nossa galáxia, entre biliões de galáxias. Por fim, quanto à consciência, o nosso último reduto, provavelmente estávamos certos ao pensar que a tínhamos em maior quantidade do que qualquer outro ser ao cimo da Terra. Mas a mente que outrora se tinha revoltado contra os deuses estava prestes a ser destronada fruto do seu próprio extraordinário alcance. Numa versão comprimida, inventaríamos uma máquina um pouco mais inteligente do que nós, depois faríamos com que essa máquina inventasse outra máquina que estaria para lá do nosso entendimento. Que necessidade haveria então de nós?"



"Máquinas Como Eu e pessoas como vocês" de Ian McEwan
Gradiva Publicações
1ª edição, Abril de 2019
Páginas 88 e 89

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