sexta-feira, 18 de abril de 2025

"O Género Intranquilo - anatomia do ensaio e do fragmento" (VII)

 " ... o mundo literário, a sociedade e as instituições reconhecem o ensaio, e parecem até promovê-lo. Mas há alguma coisa de perverso (ou de ingénuo) nesse reconhecimento, já que essa mesma sociedade e as suas instituições (incluindo a Universidade), naquilo que melhor as define hoje, dificilmente aceitam, e muito menos legitimam e promovem, a «pulsão ensaística» que, ainda segundo Eduardo Lourenço, «nasce da experiência de cada um como expressão da sua "instabilidade" ontológica». Acontece que o modo de estar no mundo da nossa contemporaneidade raramente gosta de mostrar aquele lado instável, intranquilo ou periclitante que é apanágio da busca de sentido(s) que o ensaio pratica, com um instrumento que é uma espécie de sexto sentido da teoria dos géneros e das práticas de escrita. O ensaio, sobre o qual recai desde logo a grande suspeita de ser um género «diletante», acaba por ser facilmente visto como um género «sem qualidades». Em muita coisa, na verdade, este género a um tempo tão humilde e tão soberano, tão marginal aos tempos e tão dependente do tempo, se perfila contra o mainstream cultural dos nossos dias."


"Sendo assim - e ele é assim -, o ensaio não pode ser (como a poesia hoje também não é) aquilo que os tempos esperam que todos sejamos: um género ganhador. Ganhadores são hoje outros géneros: a biografia, a autobiografia e a fotobiografia, a «grande reportagem», alguma ficção, mais musculada ou mais publicitada, mais espectacular ou mais alienante. O ensaio, porém, não dá certezas, tira-as todas."



João Barrento em "O Género Intranquilo - anatomia do ensaio e do fragmento"
Assírio & Alvim, Setembro de 2010
Páginas 81, 82 e 90

domingo, 13 de abril de 2025

"O Género Intranquilo - anatomia do ensaio e do fragmento" (VI)

 
"Porque o ensaio, ainda que possa retirar grande parte da sua sedução do estilo elíptico ou metafórico, não pode ser um discurso cifrado. Nem se confunde com o fragmento. Nem participa do minimalismo atomizador da cultura mediática e política do nosso tempo: o ensaio, nas suas variantes mais livres, que, no limite, podem ir da crónica jornalística à reflexão de fundo, coloca-se, isso sim, na situação, única e instável, de ter de pensar o seu objecto - à partida qualquer objecto - de forma múltipla, no interior dessa barca onde todos vamos, mas de um ponto de vista que lhe é necessariamente exterior. Porque o ensaio, para sê-lo, ensaia, com a medida de tempo e de espaço que lhe convém, formas de escrita que o levam a pensar também de forma crítica e livre o próprio campo cultural que o gera."


" ... talvez as razões da fraca presença do ensaio se devam ao facto de ele ter uma clara propensão para germinar no espaço universitário, um húmus que, no entanto, se revela quase sempre incompatível com a disponibilidade e a libertação de normas, com a criatividade de pensamento em linguagem que é apanágio do ensaio."



João Barrento em "O Género Intranquilo - anatomia do ensaio e do fragmento"
Assírio & Alvim, Setembro de 2010
Páginas 79 e 80

sábado, 12 de abril de 2025

"O Género Intranquilo - anatomia do ensaio e do fragmento" (V)

 "É ainda Barthes quem o sugere: «O fragmento tem um ideal: uma alta condensação, não de pensamento, ou de sabedoria, ou de verdade (como na máxima), mas de música: ao "desenvolvimento" opor-se-ia o "tom", qualquer coisa de articulado e de cantado, uma dicção ...». Uma «escrita de pedras» (Roger Caillois, Pierres) com timbre próprio, sempre fragmentos de outras maiores, mas completas. O fragmento é «arestado» (tem arestas), mas não fechado; cortante, mas não dobrado sobre si próprio, «equilíbrio miraculoso fora de qualquer eixo» (Garrigues: 1995, 19). A sua leitura é uma arqueologia: leitura de vestígios, intuição de marcas deixadas no seu corpo, mas que remetem para instâncias exteriores a ele."


"O leitor de fragmentos, leitor por excelência melancólico e de olhar alegórico, é, numa bela expressão, quase intraduzível, de Pascal Quignard, frappé d'origine (tocado pelo sopro das origens?). Como aquele que os escreve, sente-se atraído pelos começos, e tende a multiplicá-los, adiando sine linea a conclusão."



João Barrento em "O Género Intranquilo - anatomia do ensaio e do fragmento"
Assírio & Alvim, Setembro de 2010
Página 77

sexta-feira, 11 de abril de 2025

"O Género Intranquilo - anatomia do ensaio e do fragmento" (IV)

 
"Por sua vez, a poesia (moderna) é sempre fragmento, e na sua história recente tem oscilado entre perder-se na sopa indistinta da totalidade (nos adeptos do poema longo) e concentrar-se no orgasmo do fragmento (nos paladinos do laconismo e da forma breve). O fragmento (o romântico), esse é a materialização mesma do poético: põe em acção a imaginação, eleva as coisas do mundo a uma potência superior, sonha com uma totalidade - é totalidade intensiva, ausência presente convergindo para um centro. Para os primeiros românticos alemães, a expressão do absoluto poético tem de passar por uma forma como a do fragmento «órgão do infinito» em moldes aparentemente finitos e limitados, mas na verdade abertos e sem margens.
(...)
Ou com aquele resto que é condição de possibilidade do alargamento de sentido pela imaginação, próprio dessa forma concentracionária sempre à beira da explosão que é o fragmento?"




João Barrento em "O Género Intranquilo - anatomia do ensaio e do fragmento"
Assírio & Alvim, Setembro de 2010
Página 64

quarta-feira, 19 de março de 2025

"O Género Intranquilo - anatomia do ensaio e do fragmento" (III)

 
"As epígrafes assinalam o lugar de um eu que, ciente da distância que separa a sua consciência moderna da romântica (de um Novalis), se esboroa e recolhe os restos do naufrágio na praia do tempo, nas águas de um poema-fragmento que o espelham, e onde se afunda. O eu que escreve este ensaio-fragmento encontra-se na mesma situação, sabendo que pensar é abrir caminho (próprio) por entre os escombros do que foi pensado. É isso que explica o seu refúgio no porto inseguro desta forma, «destes fragmentos a que dei abrigo à sombra das minhas ruínas», sob um leve «rumor que murmura». Sem tábua de salvação (sistema), apenas descendo um a um os degraus de uma interminável queda  - talvez num abismo de luz."



João Barrento em "O Género Intranquilo - anatomia do ensaio e do fragmento"
Assírio & Alvim, Setembro de 2010
Página 61

domingo, 16 de março de 2025

"O Género Intranquilo - anatomia do ensaio e do fragmento" (II)


"O ensaio é a ambiguidade consciente. A pureza, sente-a como violência, a sua lei é sempre mais a do hibridismo, da travestização genológica. Pode haver nele uma vontade (potentia) de ficção, de poesia, de dramatismo.
Assim, cada ensaio é um texto singular, a que nunca se conseguirá chegar com uma sistemática dos géneros."



"Em cada ensaio genuíno há bolsas de silêncio, suspensões da significação, bolhas em que o leitor pode respirar, interrogar, espantar-se, adivinhar. É «o texto inesgotável das nossas contradições» (Diderot), eterno preâmbulo que abre o apetite, cria o desejo - e o suspende."



"O ensaísta escreve frequentemente, com as suas obsessões e os seus temas recorrentes, um único ensaio contínuo - como alguns poetas, ou mesmo prosadores com forte componente reflexiva, da estirpe de uma Maria Gabriela Llansol, cuja obra é um único rio de escrita, um espaço de textualidade contínua. É muitas vezes assim nos ensaístas natos - Eduardo Lourenço, George Steiner, Jacques Derrida, Walter Benjamin, obviamente Montaigne. Como o fragmento romântico, o ensaio apresenta então uma configuração rigorosamente delimitada, mas não fechada, progredindo até ao infinito através da auto-reflexão e do desdobramento contínuo de núcleos de significação estáveis (e de marca subjectiva inconfundível) no mar de magma mutante da conceptualidade livre com que aborda os seus objectos."



João Barrento em "O Género Intranquilo - anatomia do ensaio e do fragmento"
Assírio & Alvim, Setembro de 2010
Páginas 26, 27, 35, 46 e 47

domingo, 16 de fevereiro de 2025

In a Landscape - John Cage


"O Género Intranquilo - anatomia do ensaio e do fragmento" (I)

 "A escrita do ensaio não quer dizer o dito. É desenho de cintilações do impreciso, gravado a ponta seca no corpo deslavado do tempo (atravessa-se de novo no discurso, no curso do pensamento, a pirogravura da casa, o perímetro da memória que envolve Finisterra. Finisterra é um ensaio). Nasce da névoa da empiria para ganhar corpo vivo, feito de imagens ideativas, ideias vestidas de metáfora."


"A palavra do ensaio torna-se então como a da poesia: bloco solitário de onde salta o silêncio das ideias. Sem limites. O ensaio não tem limites: impõe-se limites. Brota de qualquer pedra e começa a explorar caminhos, a demarcar um terreno. Mais por veredas de floresta que não levam a lugar nenhum do que pela estrada real (é talvez por isso que «em geral, por sê-lo, os ensaístas não são modelo de coisa nenhuma», diz o saber de Eduardo Lourenço). A vida do ensaio nasce de uma névoa que se aclara."


"O ensaio é o menos imaculado dos géneros, a sua atitude é a menos hierática e hierárquica. Prefere as cores da paixão - anil, violeta, cinábrio, terra de Siena, por vezes chega perto da obra ao negro -, toca em instrumentos diversos - alaúde, violeta -, abomina tubas, trombetas, timbales, é música de câmara, recusa as grandes orquestrações romanescas e dramáticas, mas não deixa de se encenar, e revê-se nas variações tautológicas da fuga."




João Barrento em "O Género Intranquilo - anatomia do ensaio e do fragmento"
Assírio & Alvim, Setembro de 2010
Páginas 20, 21 e 24

domingo, 19 de janeiro de 2025

Li "O Vale da Paixão" de Lídia Jorge e ...

Representando a problemática da reconstituição do passado, nesta extensa metáfora narrativa, percorri muitos caminhos conducentes à secundarização da figura de Walter Dias, o desenhador de pássaros, e priorização da filha-sobrinha.

De temperamento observador, analítico, imaginativo, com tendência para a retrospecção, sabemos ser a menina de Valmares leitora da Ilíada (" ... tem o início d' A Ilíada dentro das pálpebras, tem uma infinidade de mortos aqueus e troianos estendidos na sua língua, tem o fim daquele livro na cabeça ... Cap.55 - Pág. 143) e, atentando no que diz Maria Ema, de outros "textos antigos solenes" (Cap.64 - Pág. 166).

A familiaridade com estes textos faz com que encontremos no seu discurso narrativo, ecos de alguns aspectos míticos, mitológicos, poéticos da Ilíada.
Esse discurso constitui-se de fragmentos de memórias difusos, obscuros, ambíguos, com permanentes avanços e recuos, que fazem desta narrativa um texto belíssimo, denso, complexo, no qual, embora reconheça a existência de alguma matéria de facto, por vezes, muitas vezes, não apreendemos o que aconteceu, o que possivelmente poderá ter acontecido e o que definitivamente não aconteceu.
Afinal, a menina de Valmares "sempre havia transformado o que escutava" (Cap.6 - Pág.19).

Inquestionável, é, o facto de que a narradora escreve uma história para Walter.
"Então, para que Walter saiba"
Imagina, reimagina, compõe, recompõe, supõe, de forma que, ficcionando a vida do pai biológico, ficciona também a sua. Talvez desejando para si uma narrativa diferente do que poderá ter realmente vivenciado.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

O que mais gostei de ler em 2024


 FICÇÃO

- "A Selva" de Ferreira de Castro
- "Atos Humanos" de Han Kang
- "Coração de Trevas" de Joseph Conrad
- "Os Meninos de Ouro" de Agustina Bessa-Luís
- "Os Reinegros" de Alves Redol



NÃO FICÇÃO

- "Património Alimentar de Portugal" de Maria Manuel Valagão



POESIA E OUTROS GÉNEROS

- "99 poemas" de Ryõkan
- "A Sombra do Mar" de Armando Silva Carvalho
- "Antologia Dialogante de Poesia Portuguesa" de Rosa Maria Martelo
- "Aware" de José Rui Teixeira
- "Geórgicas" de Vergílio
- "Museu da Angústia Natural" de Luís Filipe Parrado
- "Turquesa" de Daniel Maia-Pinto Rodrigues



BANDA DESENHADA

- "O Diário Do Meu Pai" de Jiro Taniguchi
- "Rugas" de Paco Roca
- "Vale dos Vencidos" de José Smith Vargas



FOTOGRAFIA E ARTES

- "Alberto Carneiro - Natureza Dentro" de Duarte Belo
- "De Natura" de Cristina Ataíde
- "Ph.03 - Helena Almeida" com textos de Delfim Sardo

Arte & Cultura: o que mais gostei em 2024


 - "Acid Flamingo" de Nuno Cera @ MUHNAC

 - "Cruz-Filipe. Modo de ver" @ Fundação Calouste Gulbenkian

 - "Japão: Festas e Rituais" @ Museu do Oriente

 - "Mar Aberto" de Nicolas Floc'h @ MAAT

 - "Não vá o diabo tecê-las! A Tapeçaria em diálogo a partir da Coleção Millennium BCP" @ Torreão Nascente da Cordoaria Nacional

 - "Netsuke" de Albano Silva Pereira @ Pavilhão Branco

 - "Os dias estão numerados" de Daniel Blaufuks @ MAAT

Dos Dias: o que mais gostei em 2024


- A Memória das Palavras - Poetas e Escritores @ Cemitério dos Prazeres
 - As Nossas Vozes - Participar na Democracia, Cuidar de Abril @ Auditório da BMO
 - Até que a morte nos separe @ Cemitério dos Prazeres
 - Conchoso @ Barco Varino Liberdade
 - Desenho no Jardim com Sara Simões @ Casa da Cerca
 - Maresia - ensemble inclusivo Notas de Contacto @ Fundação Calouste Gulbenkian
 - Viagem ao Japão Através dos Livros @ Museu do Oriente
 - XV Jornadas Llansolianas - Llansol: Os Rostos da Paisagem @ Espaço Llansol

Ecrãs: o que mais gostei em 2024

  •  "Aldina Duarte: Metade Metade" @ RTP
  •  "Arroz" de Lin Hwai-min @ RTP Palco
  • "A secreta harmonia do mundo: Fiama Hasse Pais Brandão" @ RTP2
  • "Vinhos com História" @ RTP

Filmes & Docs: o que mais gostei em 2024

 - "Dias Perfeitos" de Wim Wenders @ Atlântida - Cine Carcavelos

 - "Morangos Silvestres" de Ingmar Bergman @ TvCine Edition

 - "No Interior do Casulo Amarelo" de Thien An Pham @ Cinema Medeia Nimas

 - "O Mal Não Está Aqui" de Ryûsuke Hamaguchi @ TvCine Edition

 - "O Som do Nevoeiro" de Hiroshi Shimizu @ TvCine Edition

 - "Para Sempre Mulher" de Kinuyo Tanaka @ Cinema Medeia Nimas

 - "Sonata de Outono" de Ingmar Bergman @ TvCine Edition